terça-feira, dezembro 14, 2021

Frederico e o legado que Hitler destruiu


Agora que há um novo chanceler na Alemanha e que Angela Merkel deixa o cargo que tanto tempo ocupou, é uma boa ocasião para falar de leituras recentes. Li há pouco tempo a biografia de Frederico II, o Grande, por Nancy Mitford. Aconselho vivamente, embora seja uma edição complicada de encontrar em português, dado que era dos Livros Cotovia, editora desaparecida há pouco tempo. A autora, ela própria proveniente de um conjunto muito biografável de irmãs, acedeu aos então pouco acessíveis arquivos das antigas RDA e Checoslováquia, obtendo um conjunto de documentos notável para a construção da vida do homem que reinou sobre o Brandeburgo-Prússia durante quase meio século.


Sempre achei que Frederico fosse a personalidade mais interessante do século XVIII. Conhecia, entre outras coisas, a sua enorme capacidade na guerra, a sua habilidade política, os seus interesses e contribuições para a filosofia e para a música, os anos que Voltaire passou na corte prussiana, a terrível relação com o seu pai, a sua sexualidade ambígua e o seu tão personalizado lar de Sans-Souci, que visitei há já muitos anos. Mas desconhecia outros elementos do seu pensamento e da sua política que não são aqueles que normalmente se atribuem à Prússia.

Era o modelo de Déspota Iluminado, é certo. Ainda assim, poucos estadistas da sua época se atreveriam a dizer que "sendo o soberano faço o que me apetece, e o povo diz e reza a quem lhe apetece". Assim, todos os livros eram livremente vendidos na Prússia, quaisquer que fossem as suas ideias. As discussões eram livres e a liberdade de culto também. Sendo um dos líderes mais importantes do protestantismo, embora pouco religioso - na realidade, mais deísta que religioso - Frederico não via com bons olhos o catolicismo, mas para mostrar a sua tolerância e acolher migrantes católicos, mandou construir uma enorme igreja católica no centro de Berlim, que ainda hoje lá está. Uma das políticas era precisamente a de acolher gente de fora para povoar os territórios pouco povoados da Prússia Oriental, ou de novos territórios adquiridos. Desta forma, e seguindo uma política iniciada pelo seu pai, Frederico Guilherme I, acolheu protestantes fugidos do Sacro Império, sobretudo de Salzburgo, mas também católicos, judeus, diversas seitas cristãs, e a todos deixou construir os seus templos. Chegou a afirmar que se fosse preciso, permitiria migrantes muçulmanos vindos da Turquia e construir-lhes-ia uma mesquita (uma ideia que antecedeu em duzentos anos a imigração turca para a Alemanha).

Frederico defendia também a mistura de raças. Achava que era fundamento de civilização e que produzia pessoas inteligentes. É certo que a necessidade é que originou tanta imigração, já que perto de um décimo da população do reino tinha perecido com a terrível guerra dos Sete Anos. No fim do seu reinado, um sexto dos súbditos nascera no estrangeiro.

Também promoveu sérias reformas em termos de direitos e de sanções penais. Era ele que ratificava as penas de morte, que nunca eram numerosas, e nunca condenou mulheres. Aliás perdoou a um criado que tentou envenenar a sua bebida, e castigou-o enviando para o exército. Numa ocasião, passando nas ruas de Berlim, reparou numa caricatura sua no alto de m poste. À sua chegada, os transeuntes pararam logo de rir, atemorizados, ao que frederico disse para colocarem o boneco mais abaixo pois assim poderiam vê-lo melhor. Logo no início do reinado aboliu as torturas civis, que considerava cruéis e inúteis. A excepção era o exército, onde havia castigos severos, como chicotadas.

O mais espantoso disto é que tendo sido Frederico a tornar a Prússia numa potência europeia e a lançar as sementes do nacionalismo alemão, que fariam cem anos mais tarde os estados alemães juntar-se ao reino dos Hohenzollern, formando o Reich, aquela tenha ficado com uma tal fama militarista e bárbara que tenha mesmo acabado por ser extinta após a II Guerra. Para mais, é frequentemente ligada a Hitler, tal como o espírito alemão. O mentor do nazismo comparou-se nas campanhas que o levaram a chanceler, a Bismarck e a Frederico II. 


E no entanto, como se verificou, era precisamente o oposto do monarca prussiano. Frederico recebia gente de toda a Europa e defendia a mistura de raças. Hitler defendia a superioridade racial alemã e usou a solução final contra judeus e outros povos (o prussiano não morria de amores pelos judeus, mas nunca os perseguiu). Frederico autorizava todos os livros e toda a circulação de ideias, recebia os maiores pensadores da época e a sua corte de Potsdam era famosa como centro de discussão filosófica e de apoio às artes e letras, em especial a música (o próprio Frederico era exímio como flautista e escreveu obras valiosas, como O Anti-Maquiavel e a Histoire de la Guerre des Sept Ans, nunca editada mas considerada um dos melhores testemunhos narrativos daquela guerra). Hitler afastou ou obrigou à fuga de milhares de artistas, pensadores e intelectuais, organizou sessões de autos-de-fé de livros e reprimiu a chamada "arte degenerada" (e a liberdade de expressão nem se fala). Por fim, quando Frederico morreu, depois de 46 anos de reinado, a Prússia passara de uma reino bem administrado mas vassalo e subserviente a uma potência militar continental temida e duplicara território e população. Quando Hitler desapareceu ao fim de 12 anos, a Alemanha estava em ruínas, perdera milhões de habitantes, entre mortos, exilados e prisioneiros, tornara-se pasto dos seus inimigos, o seu nome estava manchado pela infâmia e ficara sem os seus territórios mais a leste (incluindo a Prússia originária e a capital, Konigsberg), territórios esses que, curiosamente e na sua maioria, fora Frederico a adquirir.

As únicas semelhanças serão talvez algum ímpeto guerreiro e de conquista, que levaram o rei da Prússia a vitórias brilhantes mas a algumas duras derrotas, como quando russos e austríacos ocuparam Berlim, duzentos anos anos anos de os primeiros o voltarem a fazer, com mais êxito. Também Dresden sofreu um primeiro bombardeamento arrasador, mas aí efectuado pelos próprios prussianos. De resto, Frederico contou muitas mais vitórias que derrotas e revelou-se um hábil diplomata quando teve de o demonstrar, reconciliando-se com os seus inimigos nos últimos anos, em especial a sua grande adversária Maria Teresa de Áustria.

É incrível como é que a Alemanha se viu enredada naquele pesadelo totalitário e apocalíptico quando um dos seus grandes obreiros tinha ideias absolutamente opostas. Como se o século XX tivesse regredido para níveis que no século XVIII achariam intoleráveis. O que mostra que o carácter e a cultura dos povos não é sempre igual nem se pauta sempre na mesma direcção. Há heranças que se quebram e que se esquecem. Há rumos que degeneram povos. Que o povo alemão tenha tido um Frederico e mais tarde um Hitler, que destruiu o legado do primeiro e que era em tudo o contrário (embora felizmente os chanceleres do pós-guerra também fossem completamente diferentes), aí está para o provar e para afirmar que certos ferretes que se colam estão longe de ser justos.


2 comentários:

José Lopes disse...

Post interessante. Pergunta como é que um povo culto pode ter votado no partido nazi, mas nunca de forma maioritária, que o levou ao poder em 1933. Tal só sucedeu pela incapacidade dos comunistas e sociais democratas se unirem, quando tinham a maioria.

Aconselho a leitura da "Alemanha ensanguentada", do Aquilino Ribeiro, um relato impressionante do que viu naquele país nos anos 20.

João Pedro disse...

Tenho esse livro algures, em edição recente, mas ainda não o li. De qualquer forma, o que espanta é mesmo a propaganda com que Hitler se comparava a Frederico tendo ideias completamente opostas. Por certo só deu relevo às suas proezas militares.