Agora que há um novo chanceler na Alemanha e que Angela Merkel deixa o cargo que tanto tempo ocupou, é uma boa ocasião para falar de leituras recentes. Li há pouco tempo a biografia de Frederico II, o Grande, por Nancy Mitford. Aconselho vivamente, embora seja uma edição complicada de encontrar em português, dado que era dos Livros Cotovia, editora desaparecida há pouco tempo. A autora, ela própria proveniente de um conjunto muito biografável de irmãs, acedeu aos então pouco acessíveis arquivos das antigas RDA e Checoslováquia, obtendo um conjunto de documentos notável para a construção da vida do homem que reinou sobre o Brandeburgo-Prússia durante quase meio século.
Sempre achei que Frederico fosse a personalidade mais interessante do século XVIII. Conhecia, entre outras coisas, a sua enorme capacidade na guerra, a sua habilidade política, os seus interesses e contribuições para a filosofia e para a música, os anos que Voltaire passou na corte prussiana, a terrível relação com o seu pai, a sua sexualidade ambígua e o seu tão personalizado lar de Sans-Souci, que visitei há já muitos anos. Mas desconhecia outros elementos do seu pensamento e da sua política que não são aqueles que normalmente se atribuem à Prússia.
Era o modelo de Déspota Iluminado, é certo. Ainda assim, poucos estadistas da sua época se atreveriam a dizer que "sendo o soberano faço o que me apetece, e o povo diz e reza a quem lhe apetece". Assim, todos os livros eram livremente vendidos na Prússia, quaisquer que fossem as suas ideias. As discussões eram livres e a liberdade de culto também. Sendo um dos líderes mais importantes do protestantismo, embora pouco religioso - na realidade, mais deísta que religioso - Frederico não via com bons olhos o catolicismo, mas para mostrar a sua tolerância e acolher migrantes católicos, mandou construir uma enorme igreja católica no centro de Berlim, que ainda hoje lá está. Uma das políticas era precisamente a de acolher gente de fora para povoar os territórios pouco povoados da Prússia Oriental, ou de novos territórios adquiridos. Desta forma, e seguindo uma política iniciada pelo seu pai, Frederico Guilherme I, acolheu protestantes fugidos do Sacro Império, sobretudo de Salzburgo, mas também católicos, judeus, diversas seitas cristãs, e a todos deixou construir os seus templos. Chegou a afirmar que se fosse preciso, permitiria migrantes muçulmanos vindos da Turquia e construir-lhes-ia uma mesquita (uma ideia que antecedeu em duzentos anos a imigração turca para a Alemanha).
Frederico defendia também a mistura de raças. Achava que era fundamento de civilização e que produzia pessoas inteligentes. É certo que a necessidade é que originou tanta imigração, já que perto de um décimo da população do reino tinha perecido com a terrível guerra dos Sete Anos. No fim do seu reinado, um sexto dos súbditos nascera no estrangeiro.
Também promoveu sérias reformas em termos de direitos e de sanções penais. Era ele que ratificava as penas de morte, que nunca eram numerosas, e nunca condenou mulheres. Aliás perdoou a um criado que tentou envenenar a sua bebida, e castigou-o enviando para o exército. Numa ocasião, passando nas ruas de Berlim, reparou numa caricatura sua no alto de m poste. À sua chegada, os transeuntes pararam logo de rir, atemorizados, ao que frederico disse para colocarem o boneco mais abaixo pois assim poderiam vê-lo melhor. Logo no início do reinado aboliu as torturas civis, que considerava cruéis e inúteis. A excepção era o exército, onde havia castigos severos, como chicotadas.
O mais espantoso disto é que tendo sido Frederico a tornar a Prússia numa potência europeia e a lançar as sementes do nacionalismo alemão, que fariam cem anos mais tarde os estados alemães juntar-se ao reino dos Hohenzollern, formando o Reich, aquela tenha ficado com uma tal fama militarista e bárbara que tenha mesmo acabado por ser extinta após a II Guerra. Para mais, é frequentemente ligada a Hitler, tal como o espírito alemão. O mentor do nazismo comparou-se nas campanhas que o levaram a chanceler, a Bismarck e a Frederico II.
As únicas semelhanças serão talvez algum ímpeto guerreiro e de conquista, que levaram o rei da Prússia a vitórias brilhantes mas a algumas duras derrotas, como quando russos e austríacos ocuparam Berlim, duzentos anos anos anos de os primeiros o voltarem a fazer, com mais êxito. Também Dresden sofreu um primeiro bombardeamento arrasador, mas aí efectuado pelos próprios prussianos. De resto, Frederico contou muitas mais vitórias que derrotas e revelou-se um hábil diplomata quando teve de o demonstrar, reconciliando-se com os seus inimigos nos últimos anos, em especial a sua grande adversária Maria Teresa de Áustria.
É incrível como é que a Alemanha se viu enredada naquele pesadelo totalitário e apocalíptico quando um dos seus grandes obreiros tinha ideias absolutamente opostas. Como se o século XX tivesse regredido para níveis que no século XVIII achariam intoleráveis. O que mostra que o carácter e a cultura dos povos não é sempre igual nem se pauta sempre na mesma direcção. Há heranças que se quebram e que se esquecem. Há rumos que degeneram povos. Que o povo alemão tenha tido um Frederico e mais tarde um Hitler, que destruiu o legado do primeiro e que era em tudo o contrário (embora felizmente os chanceleres do pós-guerra também fossem completamente diferentes), aí está para o provar e para afirmar que certos ferretes que se colam estão longe de ser justos.
2 comentários:
Post interessante. Pergunta como é que um povo culto pode ter votado no partido nazi, mas nunca de forma maioritária, que o levou ao poder em 1933. Tal só sucedeu pela incapacidade dos comunistas e sociais democratas se unirem, quando tinham a maioria.
Aconselho a leitura da "Alemanha ensanguentada", do Aquilino Ribeiro, um relato impressionante do que viu naquele país nos anos 20.
Tenho esse livro algures, em edição recente, mas ainda não o li. De qualquer forma, o que espanta é mesmo a propaganda com que Hitler se comparava a Frederico tendo ideias completamente opostas. Por certo só deu relevo às suas proezas militares.
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