domingo, janeiro 15, 2006

Histórias de sondagens

Uma reportagem televisiva de ontem recordou-me tempos passados a calcorrear montes e vales, de manhã cedo até altas horas da noite, com incómoda cargas às costas, e em difíceis contactos com as populações locais. Pensarão de imediato: será que ele era carteiro? Almocreve? Caixeiro-viajante? Vendedor de enciclopédias?

Nada disso, caros (eventuais) leitores. O que eu fazia, nos meus tempos de estudante da eterna UCP, era o trabalho prático, de campo, para as famosas sondagens RTP/Universidade Católica/ Público. Eu e mais uns quantos, que acorriam ao "recrutamento" como gato a bofe, porque o trabalho, ainda que fisicamente exigente, era monetariamente compensador para as nossas modestas carteiras de mancebos de vinte anos.
Onde se lê "trabalho de campo" deve-se entender, muitas vezes, em sentido literal. Porque ao contrário do que é corrente, os estudos não eram feitos por via telefónica, com voz metálica e robotizada, perguntando pelo dono da casa. Íamos directamente ao cerne da questão, à soleira das casas dos entrevistados, pedir-lhe a sua opinião, oral ou escrita, se fosse o voto. Para tal, usávamos os nossos boletins e uma urna eleitoral, presa ao ombro, que nos arranhava a carne, embora nem fosse tão pesada quanto isso. Fazíamos o clássico porta-a-porta, mas tínhamos de estabelecer um intervalo entre casas, ou andares, se fosse num prédio, dependendo da particular concentração populacional nas diferentes localidades que visitávamos.

Como éramos da UCP Porto, fazíamos a metade norte do país, até ao mondego. Os sítios para onde nos deslocávamos eram do mais contrastante possível. Iam do centro do Porto à mais remota aldeia da Serra da Peneda. no meu caso, lembro-me de ter andado pela Foz do Douro, a poucos passos da faculdade, mas de ter ido igualmente a Ermesinde, Ançã (Cantanhede), São João da Madeira, Marco de Canaveses, Nelas, Pinhel e, na minha estreia, a Almalaguês.

Esta localidade é, para quem não sabe, uma freguesia do concelho de Coimbra, a uns quinze kilómetros da cidade dos estudantes, mas com recantos de uma ruralidade inimaginável. Dispersa em meia dúzia de lugares, nem sempre era fácil percorrer a freguesia. Algumas pessoas recebiam-nos com desconfiança, pensando que íamos fazer um peditório ou propaganda a uma qualquer seita. Outros, pelo contrário, demoravam-nos e faziam-nos perder tempo precioso, falando da estrada em más condições, dos horários da carreira, dos impostos, de todo o tipo de mazelas, como se conhecêssemos perfeitamente a terra e os seus problemas.

Uma das regras básicas e obrigatórias neste tipo de sondagens é o de entrevistar a última pessoa a ter feito anos naquela casa. Não sabia exactamente porquê, mas aquilo era sagrado, por razões de fiabilidade estatística. Acontecia por vezes termos alguém predisposto a responder, com toda a boa vontade, na única casa em centenas de metros, mas... a última pessoa do algomerado que tinha feito anos há menos tempo estava ausente. Desapontadíssimos, tínhamos de agradecer com um sorriso amarelo e partir para outra tentativa. E, digo-vos, era duro, até porque, como já disse atrás, raras vezes as recepções eram calorosas.
Outro dos efeitos da regra dos aniversários revelou curiosas situações de patriarcado: numa garagem, a família encontrava-se toda reunida, e a pessoa habilitada pelo nosso método a responder era a dona da casa. Mas sempre que punha as questões do inquérito, era sempre o marido que respondia; quando me dirigia directamente à senhora para que fose ele a responder, ela levantava a cabeça do fogão onde cozinhava e retorquia: "é assim como o meu marido diz".

O desconhecimento sobre a política nacional e os seus protagonistas era também grande noutras terras esquecidas, como numa dos distrito da Guarda, onde um idoso me disse que por ele "era do CDS do Professor Freitas do Amaral"; mais adiante, um casal afirmava-se "pelo PS do Mário Soares". Só faltaram mesmo invocações de Sá Carneiro, Cavaco ou Cunhal. O inquérito, note-se, era para a regionalização. Também se verificava a tendência em votar em quem já ocupava o lugar; certa inquirida, depois de considerar que a sua autarquia estava má em todos os aspectos, acabava por confessar que votaria no mesmo presidente, porque gostava muito dele. E até pude assistir à caricaturada e espremida confusão entre cultura e agricultura!

Encontravam-se pessoas de todo o tipo nestas viagens, desde rapariguinhas com menos de vinte anos já casadas até idosos que ficavam sem perceber bem as nossas intenções, mesmo depois de acabado o inquérito, ou ainda outras pessoas que receavam ficar com o nome na polícia ou aparecer na televisão (os inquéritos eram rigorosamente anónimos). O "Portugal profundo" estava ali, vendo os dias passar com o mesmo vagar de sempre, indiferente à política nacional e aos acontecimentos do mundo, mais preocupado consigo mesmo, com a família e os problemas locais do dia-a-dia, desconfiado dos forasteiros e dos que lhe quebrassem a pacatez habitual. A experiência das sondagens permitiu-me isso, entre outras coisas. Também me deu a possibilidade de conhecer os meus companheiros de trabalho, pessoas que às vezes mal conhecia de vista da faculdade, como um ex-colega meu que mais tarde venceu um reality-show televisivo e agora entre num programa de humor da mesma estação.

Por isso, se alguma vez um estudante de urna ás costas, com o crachá do Centro de Sondagens da Universidade Católica, lhes perguntar para responder às suas perguntas, não o enxotem de pronto, e se não tiverem nada ao lume, respondam às suas peguntas. Há duas boas razões para isso: a primeira é que o inquiridor agradece imenso qualquer inquérito feito, até porque o seu trabalho só acaba quando todos estiverem preenchidos, excepto por razões de força maior; não se pode voltar com folhas em branco para a base. A segunda é que estas sondagens são realmente fiáveis, como já se pôde comprovar, e são as que mais se aproximam dos resultados finais. Muito mais do que se fossem feitas por telefone, com toda a probabilidade. São razões de sobre para não tratar o inquiridor como um intruso inoportuno. É ele que calcorreia o país para que se fique com ideia de quem vencerá os escrutínios, e para que os jornais tenham matéria de sobra com que dissertar.

Ah: podem informar-se melhor aqui, e já agora dar-lhe os parabéns pelo primeiro aniversário.

Nenhum comentário: