segunda-feira, fevereiro 12, 2007

Depois do referendo

O que há a dizer no rescaldo do referendo? Que a minha escolha, aqui e aqui expressa, perdeu nas urnas. Só soube do resultado lá pelas onze horas, porque antes disso estava num comboio entre Porto e Lisboa. Não foi a vitória do "sim" que me espantou e entristeceu, mas a diferença clara entre as votações.

Como não tenho os pruridos do PCP, entendo que a escolha dos que votaram deve ser respeitada, mesmo que o referendo juridicamente não seja vinculativo (como não o fora em 98). Faço votos para que a nova legislação seja moderada e não deixe de considerar o aborto um mal, dando o necessário atendimento às grávidas e não esquecendo o direito à maternidade, constitucionalmente consagrado, mais a mais num país com fraca natalidade.
Mas como já se disse repetidamente noutras partes, a questão não está nem pouco mais ou menos resolvida. Temo que o número de abortos suba, e não apenas nos primeiros tempos, mas também que o SNS tenha ainda mais dificuldades em atender os pacientes habituais, que o aborto clandestino permaneça (em alguns meios vai com certeza subsistir) elevado, e que se observe a aberrante situação de ver as mulheres de Espanha a vir abortar ao nosso país, quando em certas situações uma portuguesa tem de ir dar à luz a Badajoz. Sim, isso pode muito bem acontecer, e não é por acaso que já há uma clínica espanhola especializada em abortos a ser montada em Lisboa... mesmo antes de se saberem os resultados do referendo. Quem viu a entrevista a uma cinicíssima representante dessa casa não poderá com certeza ter deixado de reprimir um arrepio pela espinha.

Os vencidos da noite foram portanto os que estavam do lado do não, como eu, excepto talvez uma pessoa: Ribeiro e Castro. Com uma campanha infatigável, quase sozinho, foi o líder do único partido que disse "não" e na declaração oficial não atirou a toalha ao chão, prometendo que continuaria atento e a lutar pelas suas convicções. Ganhou um grande capital político, que Portas e os seus acólitos terão de enfrentar doravante.
Outros derrotados: Marcelo, claramente, e Marques Mendes. O PSD não entra nestas contas devido à sua divisão entre as duas opções. E embora tenha criticado este partido pela sua campanha ambígua, devo igualmente felicitá-lo: se a questão não era política nem partidária, então partido algum devia ter tomado posição, deixando o caminho aberto para os vários grupos de cidadãos. A partidarização de questões desta natureza é que tem tendência a afastar as pessoas das actividades cívicas; e nem assim se compreende os apelos para que a Igreja não se metesse ao barulho. Afinal de contas, porque é que os direitos dos partidos a fazerem estas campanhas prevalecem sobre as confissões religiosas? Só se a questão fôr afinal política, coisa que não é ou não deveria ser.
De tudo isto, retira-se ao menos um facto positivo: a maior participação dos cidadãos organizados fora das esferas partidárias. Um exemplo que deve frutificar.

Entre os vencedores, Sócrates, claro. A vitória do "sim" deve-se provavelmente a ele e a mais ninguém. A diferença entre 98 e 2006 esteve provavelmente na mobilização do governo e do PS quase todo, com as raras excepções do "não". O PCP conseguiu enfim ver aprovada na prática a tese de licenciatura do seu líder histórico, mas quanto a capital político, é duvidoso que tenha ganho muito. O BE terá ganho esta batalha, mas pelas reacções pantomineiras duvido que tenha angariado muitos trunfos. Aquele cartaz do "Bem-vindos ao Século XXI" é uma coisa confrangedora. Como é que pessoas que vivem, na melhor das hipóteses, nos anos setenta, podem servir de anfitriões ao Século XXI? Aquilo era antes um "bem-vindos à pós-modernidade"; tinha muito mais a ver com aquele partido e com este momento.

Como disse atrás, a questão está longe de estar resolvida. As convicções não se calam por causa de uma derrota nas urnas. E quase aposto que um dia terá de se fazer novo referendo sobre o assunto, mas noutro sentido. Se uns o puderam repetir, porque não os outros? É assim que funciona a democracia.

4 comentários:

JMM disse...

Caro JP,

Um abraço e obrigado por tudo!

João Pedro disse...

Um abraço também pelo enorme trabalho e pela oportunidade de escrever no Norte pela Vida. Lá voltaremos!

Anônimo disse...

Onde está "Só se a questão fôr afinal política, coisa que não é ou não deveria ser." deveria estar 'se (...) for (...)'.

João Pedro disse...

Tem razão, anónimo, mas que quer? É uma dúvida que me assalta sempre