quinta-feira, setembro 16, 2021

Jorge Sampaio

 



A propósito da morte de Jorge Sampaio, discordei dele em váriadas ocasiões, mas tinha aspectos de que muito poucos políticos se podem gabar. Claro que vai ficar como uma das figuras políticas cimeiras das últimas décadas, desde o seu papel de líder estudantil e advogado, depois como líder da oposição (de início parecia-me Vítor Constância de cabelo ruivo) e presidente da CML até Belém. Curiosamente a sua maior derrota aconteceu em 1991 contra Cavaco Silva - que lhe rendeu agora um dos elogios mais sentidos - e a sua maior vitória, nas presidenciais de 1996, também. Teve como ponto alto o seu papel na crise de Timor, e como ponto mais baixo a trapalhada com Santana Lopes, antes e depois de o nomear. Como legado mais recente deixa o seu trabalho em permitir que refugiados pudessem continuar os seus estudos.

Mas para além disso era um gentleman da política, naquele registo que parecia racional, low profile e legalista (no 25 de Abril resolveu ficar em casa, quando estava tudo na rua, porque era isso que o MFA estava a pedir, e chegou a dizer que se escolhesse lema seria "dura lex sed lex") mas que facilmente se emocionava. Deixo dois exemplos: numa visita à faculdade onde eu estudava, ouviu-me a perguntar, quase irado e à sua frente, porque é que o 1 de Dezembro não tinha mais destaque, ao que respondeu serenamente, com uma resposta que aceitei, dando a entender que também o lamentava. E quando ganhou as presidenciais pela primeira vez, ao chegar à varanda onde iria discursar à multidão que o vitoriava, mandou antes de tudo com autoridade retirar um enorme gigantone que representava e ridicularizava Cavaco Silva.

Sobre o momento mais polémico da sua presidência, a nomeação de Santana Lopes e a dissolução do Parlamento seis meses depois, convocando as eleições que depois dariam o poder a Sócrates, relembro que apesar das críticas que a direita lhe teceu então, ficaram ainda assim aquém das que a esquerda lhe disparou ao decidir convidar Santana a formar governo. Provavelmente a maioria acha hoje que ele faria melhor em convocar logo eleições (e o PSD em escolher a então segunda figura do governo, Manuel Ferreira Leite, para o liderar, quatro anos do que sucedeu mais tarde). Mas decidiu não o fazer e com isso atraiu a fúria da esquerda. Ferro Rodrigues demitiu-se da liderança do PS nesse mesmo dia, indignado com a decisão presidencial. Saramago disse que "a democracia acabara em Portugal". Francisco Louçã afirmou que era "o princípio do fim do 25 de Abril". Na festa do Avante desse ano usaram-se t-shirts anti-Sampaio. E como na noite seguinte, precisamente, morreu de súbito Maria de Lurdes Pintassilgo, não faltou quem dissesse explicitamente que se deveria ao desgosto da decisão de Sampaio. Em suma, provavelmente nunca nenhuma figura da esquerda (nem da direita) portuguesa atraiu tanto os ódios do seu espectro político como Jorge Sampaio. Curiosamente, muitos destes correligionários aplaudiram dez anos depois a constituição da "geringonça", que, tal como no governo Santana, se baseava numa maioria parlamentar.

Que o "cenoura", como lhe chamavam carinhosamente, descanse em paz.

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