Cem anos de Torga, comemorados na Segunda. Bem lembrados, excepto pela lamentável ausência de membros do governo nas comemorações oficiais, em Coimbra. Tanta preocupação com o conhecimento tecnológico e científico, com as línguas e a informática, e desdenham assim da efeméride consagrada a um dos maiores prosadores portugueses (mais do que poeta) do último século.
Outro erro grave: no meio do noticiário da RTP, em directo do Douro, com flashes em S. Martinho de Anta e Coimbra, a repórter que tinha por trás de si a curva impressionante do rio que rasga Trás-os-Montes lembra-se desta pérola: "vamos agora a Coimbra, cidade onde nasceu e viveu Miguel Torga..." Nem com um ponto para a ajudar - a outra repórter em S. Martinho - a senhora percebeu que Torga não era natural da Lusa Atenas.
Mas pelo menos a data não ficou esquecida. Nem em Coimbra, ao lado da paragem de romarias que era o antigo consultório do Dr. Adolfo Correia da Rocha, no Largo da Portagem, sob o Governo Civil; nem em S. Martinho, no largo da aldeia, junto ao busto do autor dos Diários, perto da singela casinha com portadas azuis onde ele nasceu; houve mesmo um monólogo do actor José Pinto, cujas semelhanças com o médico são notórias, sobre a paisagem mágica do Douro. Pena que não fosse (pelo menos não me pareceu) no promontório de S. Leonardo de Galafura, que tanto inspirou Torga, o seu amor telúrico pela velha terra transmontana e o seu fascínio pela paisagem duriense, e que ainda exibe os seus versos numa lápide da ermida que ali se encontra.
Conhecendo superficialmente a sua poesia, e daí a preferência pela prosa, tendo visto alguns dos Diários de forma pouco cronológica e metódica, fui tocado quando era pequeno pelos seus Bichos, Contos da Montanha e Rua. A simplicidade da prosa, aliada a velha linguagem, pouco usada mas clara, ligada a situações e personagens bem portuguesas, e particularmente transmontanas despertou-me para mais leituras do autor. Algumas são autênticas lições de vida, com muito de autobiográfico pelo meio. E já que é do seu centenário que tratamos, relembro o comovente conto Natal, dos Novos Contos da Montanha, em que um mendigo, o Garrinchas, se abriga pela gelada e santa noite numa ermida, convidando a estátua da Virgem com o Menino ao colo para o acompanharem na sua parca ceia, à volta da fogueira. Pois essa emida não é outra senão a da Senhora da Azinheira, no alto de um monte desolado, com vegetação rasteira e rochas, uma fabulosa vista sobre a região circundante, até ao douro, e sobranceira a S. Martinho da Anta, a terra do escritor. Mesmo com toda a notoriedade que alcançou, Torga não esqueceu nunca de onde vinha nem quem era.
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