sexta-feira, fevereiro 05, 2010

Hergé e os judeus



Embora conheça todos os álbuns de Tintin (excepto o incompleto Alph Art, por essa mesma razão), uma das coisas que mais gostava de fazer era de lê-los a todos nas versões originais, isto é, a preto e branco, com aquele traço a carvão que ficou para sempre nesse magnífico Au pays des Soviets. Sei que pelo menos quatro deles são vendidos nessas versões, mas ignoro se houve mais edições. Abriu recentemente uma loja do herói belga em Lisboa, na Avenida de Roma, por isso talvez tenha sorte.


Nessas edições notam-se diferenças em relação aos coloridos, ou porque estão datados, ou por razões de conveniência, muitas vezes política. Como se sabe, Tintin nasceu como repórter do Petit Vintième, suplemento juvenil do jornal onde o seu criador trabalhava e que era dirigido pelo padre Wallez, um sacerdote ultratradicionalista com admiração por Mussolini e que iria apoiar o movimento Rexista de Leon Degrelle (de resto também ele amigo de Hergé, e segundo o próprio, inspiração física de Tintin). Por causa disso, muitas vezes o conotaram com posições pró-fascistas, anti-semitas e pró-nazis, tendo como base alguns dos livros originais.


Um dos casos é A Estrela Misteriosa, que data de 1941, época em que a Bélgica estava ocupada pela Alemanha nazi. No livro, com um cenário inicial apocalíptico, uma expedição europeia, em que participam Tintin e Haddock, vai em busca de um metal caído do espaço, e é constituída exclusivamente por cientistas de países do Eixo ou neutros (entre os quais um português). A expedição rival é americana, usa em vão todos os truques para chegar primeiro, e é financiada por um banqueiro judeu, com todos os traços inerentes.


Mais tarde, Hergé mudaria nomes e o carácter do financiador, mas também um interessante quadradinho que surge quase no início. Aí, dois judeus caricaturados falam um com o outro, perante a eminência da colisão da Terra com uma estrela, e um deles afirma que seria bom porque assim não teria de devolver o dinheiro que devia aos fornecedores.


Em tempos de ocupação, ficava sempre bem atribuir aos hebreus um carácter perverso e pecaminoso. É conhecida a extensa propaganda anti-semita feita pelos meios culturais do Reich, como o filme Jud Suss, à qual também a BD não escapou, coisa que seria ainda menos fácil numa publicação como o Vingtième Siécle. Mais tarde, na primeira versão de No País do Ouro Negro, concebido ainda durante a ocupação, Tintin é raptado por elementos do Irgun, o movimento terrorista que lutava contra o Mandato britânico da Palestina. Na versão moderna, os raptores são árabes.
Apesar das simpatias políticas de Hergé e do seu anti-comunismo, duvido que se possa considerar o autor como um pró-fascista ou sequer ou colaboracionista dos nazis. A negá-lo estão as obras anteriores à Guerra, em especial O Ceptro de Ottokar, em que se faz uma violenta sátira contra o Anchluss, e em que o repórter impede que o reino balcânico da Sildávia seja anexado pela Bordúria, um estado totalitário onde pontifica a Guarda de Aço (clara inspiração na Guarda de Ferro romena, de Codreanu), chefiada por Musstler - um anagrama de Hitler e Mussolini.
Mas já as referências pouco abonatórias aos judeus fazem pensar que haveria um certo sentimento se antipatia. Hergé, que pôs Tintin a defender os índios, os negros, os chineses e os ciganos, é bem menos condescendente nas suas primeiras obras face aos hebreus, e também aos americanos. Mais do que acompanhar uma moda de hostilidades de uma certa época, Hergé parece devotar também muito pouca simpatia pelo capitalismo e pelo grande mercado, representado exactamente por estes povos. É um sentimento muito europeu (do Centro e Sul), particularmente católico, de repulsa do capitalismo e da vida moderna, contrapondo a amizade, a coragem e a abnegação. Tintin é por excelência um herói do Velho Mundo, sem super-poderes nem armas, que apesar de se inscrever numa determinada era, nem por isso o público o considera datado. Tanto que os anunciados filmes de Steven Spielberg baseados no repórter aí vêm. Enorme ironia: será um judeu americano a fazer de Tintin um produto para as grandes massas no novo Mundo; tudo aquilo que Hergé criticava vai-se apropriar assim da sua maior criação. Desejá-lo-ia o autor? A adaptação ao cinema já era um plano do seu conhecimento, e a sua Fundação deu o aval. No fundo, o capitalismo americano reinante conseguiu atrair um dos seus adversários, sem o considerar um Cavalo de Tróia. E ao que parece, os judeus não se importaram muito com as primeiras versões.

Um comentário:

Dr.da Mula Russa disse...

Parabéns, talvez este tenha sido o melhor artigo que li neste pasquim...
História, cultura, pesquisa, rigor, excelência na informação...