Hoje virou-se uma página na história de Espanha, para além do fim da triunfal geração da selecção de futebol: Juan Carlos I, o monarca que devolveu a democracia ao país e que a aguentou nos momentos mais complicados, dando espaço aos restantes actores quando se impunha, sai de cena, com a missão cumprida, dando lugar ao seu filho, doravante o Rei Felipe VI. Íntegro, consciente do seu dever, preparado, conhecedor do seu país e dos problemas que o afectam, o novo Rei é o homem em quem quase todos depositam a confiança quando Espanha atravessa uma crise política, social, regional e económica numa tempestade quase perfeita para a qual se precisa de um leme firme. Metáforas marítimas à parte, a tarefa que aguarda Felipe VI é complicada, mas dificilmente haveria alguém melhor do que ele para a enfrentar.
Juan Carlos não abdicou em vão, embora a superficialidade dominante tenha escolhido questões secundárias (como a caça ao elefante e outros faits-divers) como motivo. No ano em que a questão do separatismo se coloca como nunca, com o anunciado referendo na Catalunha, e as instituições vêem a sua popularidade em clara baixa, quando o desemprego e todos os problemas económicos resultantes da dívida e do rebentamento da bolha imobiliária que antes tinha feito a riqueza aparente do país se fazem mostrar com grande intensidade (embora haja alguns indícios de esperança), um monarca com outra disponibilidade, até física, era essencial para assegurar a estabilidade e a união de Espanha, e a imagem de uma personalidade serena mas firme impunha-se. É curioso como a comunicação social, ao falar deste assunto, não cessa de referir que "a instituição monárquica atingiu o seu ponto mais baixo de popularidade". É que todas as instituições de Espanha atingiram pontos mínimos de confiança, o que diz bem da crise das referências e da autoridade no país, e acima da coroa, só as forças armadas conseguem maior aprovação. Se queriam culpar o trono pelas crise do país, erraram o alvo...
Outra questão que boa parte das nossas TVs e jornais levantou foi a da "vontade dos espanhóis em questionar o regime", ou mesmo que "o povo espanhol" se tinha manifestado nas ruas "por um referendo para decidir se queria monarquia ou república". Eis um bom exemplo de como a suposta informação pode ser perniciosa e grosseiramente parcial. Confundir a "rua" com a vontade da maioria de um povo é um erro antigo e constante, muito repetido nestas paragens. Se fosse assim, mais valia entregarmos o governo da nação a Arménio Carlos. O que se viu foram os habituais movimentos radicais - ou independentistas - numa jogada oportunista, pretendendo aproveitar a abdicação do Rei para impor a sua vontade (que estava bem à vista: queriam um referendo para implementar uma hipotética república, não para questionar o regime), em manifestações ruidosas, com a horrível bandeira da 2ª república de má memória, muitas vezes com cartazes ilustrativos de guilhotinas ou frases tão eloquentes como "los bourbones a los tiburones". São os descendentes dos republicanos dos anos trinta, os mesmos que deixaram o país num caos e que permitiram o caldo de raivas e dissensos que levou à tenebrosa guerra civil. À cabeça, o PCE, partido legalizado por vontade expressa do Rei e que mostra agora toda a sua ingratidão, o que aliás não admira, vinda de uma formação que não hesitou em liquidar quem lhe dava na bolchevista gana e que obedecia directamente a Estaline. Ao lado, os "Indignados", muitos deles com uma postura violenta e uma agenda política que desembocou no Podemos, a nova formação partidária de inspiração chavista, que teve uma rotunda votação nas últimas eleições europeias. Em todos coexiste, além da virulência verbal, a falta de memória e a simples falsificação grosseira da história: dizem e repetem que "a monarquia não tem legitimidade" porque se funda "na ditadura franquista. É verdade que Juan Carlos foi proclamado Rei logo após a morte do caudilho; mas que se se saiba, era essa a fonte de poder em Espanha, na altura. Ganhara a guerra a uma república desaparecida, e não havia qualquer outro poder mais ou menos legítimo. Depois, o próprio Rei nomeou um governo que se encarregou de escrever uma nova constituição e de a apresentar a referendo: quase 92% dos eleitores votou a seu favor. E as formações políticas que estiveram contra, com a exlusão extraordinária do PCE dos tempos de Santiago Carrillo, eram quase as mesmas, incluindo a extrema-direita. Cai assim por terra o argumento ignorante de que "a monarquia não tem legitimidade" e que "ninguém votou nela". Houve alguns milhares na rua a brandir a daltónica bandeira republicana? Também em 1977 os anarco-sindicalistas da CNT reuniram mais de cem mil apoiantes em Barcelona, e nem por isso tiveram grande relevância nas urnas. De qualquer modo, todas as sondagens a um eventual referendo ao regime actual dão clara preferência pela monarquia - a mais desfavorável dá-lhe 13% de avanço sobre um hipotética república. Mas nem é preciso. Basta recordar que em questões de legitimidade, a monarquia espanhola, que deu ao país alguns dos seus melhores anos, com democracia, liberdade e autonomias várias, é bem mais legítima do que a maior parte das repúblicas, a começar pela que vigora em Portugal.
Felipe VI teve um discurso prolongado mas em que tocou em todos os aspectos essenciais sobre o que deverá ser o seu reinado, sem esquecer o papel do seu pai e do seu avô. A cerimónia teve sobriedade mas também pompa e dignidade. O novo Rei mostrou-se ao povo de cabeça descoberta, num soberbo Rolls Royce descapotável já com história, e depois na varanda do Palácio Real, com a nova Rainha Letizia, as filhas, agora também na linha de sucessão, e por breves momentos, os seus pais, o casal que deixou de sero Real. Terá sempre o melhor dos conselheiros para o ajudar a reinar, e a alegria de ser Rei sem que seja por morte de seu pai. A propósito, Juan Carlos ainda não tem título definido. Terão pensado em dar-lhe o de Conde de Barcelona? Seria uma bela homenagem ao seu pai, o príncipe que não reinou, e quem sabe se a recuperação do título condal não cairia bem entre muitos catalães. É também com esses aspectos subtis que se mantém um país. Ninguém mais do que Felipe VI está preparado para o fazer.
Felipe VI teve um discurso prolongado mas em que tocou em todos os aspectos essenciais sobre o que deverá ser o seu reinado, sem esquecer o papel do seu pai e do seu avô. A cerimónia teve sobriedade mas também pompa e dignidade. O novo Rei mostrou-se ao povo de cabeça descoberta, num soberbo Rolls Royce descapotável já com história, e depois na varanda do Palácio Real, com a nova Rainha Letizia, as filhas, agora também na linha de sucessão, e por breves momentos, os seus pais, o casal que deixou de sero Real. Terá sempre o melhor dos conselheiros para o ajudar a reinar, e a alegria de ser Rei sem que seja por morte de seu pai. A propósito, Juan Carlos ainda não tem título definido. Terão pensado em dar-lhe o de Conde de Barcelona? Seria uma bela homenagem ao seu pai, o príncipe que não reinou, e quem sabe se a recuperação do título condal não cairia bem entre muitos catalães. É também com esses aspectos subtis que se mantém um país. Ninguém mais do que Felipe VI está preparado para o fazer.
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