Nunca é fácil resumir o epitáfio do político que representa o regime em que vivemos e o mais representativo do nosso país no último meio século. Mas para começar, Mário Soares é daquelas personalidades que faz parte do meu imaginário desde sempre e que não me lembro de não conhecer. Era ainda pequeno mas soletrava os políticos que conhecia e que eram na altura os mais relevantes do país: Soares (o "bochechas"), Eanes (o "rameanes"), Balsemão (o "balsas"), o Freitas e o Cunhal. Destes cinco, três ainda estão vivos. Recordo-me ainda de outros, como Mota Pinto, mas os principais eram mesmo aqueles.
Mário Soares era uma personagem de paixões, e que provoca ele mesmo paixões e ódios. E é, ao mesmo tempo, uma personagem atípica: foge à austeridade que caracteriza boa parte dos políticos portugueses (desde os da 1ª república e da "ética republicana", passando por Salazar, até Cunhal, Cavaco, Eanes e mesmo Passos Coelho), era um bon-vivant, um optimista, não era um mouro de trabalho nem nunca se preocupou em dar essa imagem, nunca se destacou como um aluno brilhante nem por trabalhos académicos e intelectuais, apesar de ter uma enorme bagagem literária, e teve sempre grande empatia com as massas.
Todas essas características fazem dele uma personagem à parte na política portuguesa. A isso será sempre obrigatório juntar-lhe Maria Barroso, que esteve quase setenta anos ao seu lado, que se tornaria na Primeira Dama mais popular entre os portugueses, e cuja perda, há ano e meio, contribuiu visivelmente para o seu declínio.
Resumamos o seu percurso: filho de um ministro republicano católico, fundador do Colégio Moderno, ainda hoje pertencente à família, chegou a pertencer ao PCP, participou nas campanhas do MUD, conheceu Norton de Matos, Humberto Delgado e Jaime Cortesão, esteve preso várias vezes (casou-sena prisão, por procuração), chegou a ser deportado para S. Tomé e acabou por se estabelecer em Paris, onde conheceu inúmeras figuras internacionais ligados à Internacional socialista, como Mitterand, Willy Brandt, Felipe González e Olof Palme. Pelo meio fundou a Acção Socialista Portuguesa, que daria origem, em 1973, ao Partido Socialista. Voltou a Portugal na sequência do 25 de Abril, conseguiu tornar o PS num dos principais actores políticos do momento, e depois de algum tempo de manifestações comuns, dá-se o afastamento em relacção ao PCP, agravado com a radicalização da situação, o 11 de Março e o caso do jornal República, ligado ao PS. Realizam-se as eleições para a Assembleia Constituinte, que o PS ganha claramente, deixando o PCP e restantes satélites com resultados muito abaixo do esperado, mas nem por isso abrandando o PREC. Soares encarna a resistência na rua ao governo de Vasco Gonçalves e ao crescente domínio do PCP e dos militares esquerdistas, com grandes comícios como o da Alameda, em Lisboa, e das Antas, no Porto, que mostraram que nem todo o país pretendia uma "democracia popular", como aliás as urnas o demonstraram. Ainda em Novembro, com garantias de protecção dos Estados Unidos (onde Kissinger achava que Portugal seria a "Cuba da Europa"), Soares realiza novos comícios antes da tentativa de golpe da extrema-esquerda, sufocada pela reacção dos comandos e dos militares moderados a 25 de Novembro. com a situação normalizada, Soares assumiu o cargo de Primeiro-Ministro depois de ganhar as eleições de 1976. Com a economia de rastos e sem maioria parlamentar, teve chamar o FMI e de ensaiar várias soluções governativas, antes das iniciativas presidenciais o tirarem do governo. Seguiram-se os conflitos internos por causa da sua recusa em apoiar Eanes para novo mandato, a derrota perante a AD de Sá Carneiro, até ao regresso às vitórias em 1983, e a necessidade do acordo do bloco Central, de nova vinda do FMI e de dois anos de pesada austeridade, culminando na adesão à CEE, um dos grandes objectivos de Soares. A esse triunfo seguiu-se a derrota mais pesada, com o PS a obter apenas 20%, pouco mais que o novo PRD inspirado por Eanes, e que permitiram a Cavaco Silva e ao PSD formar o seu primeiro governo. Depois, o combate mais condenado à partida que já houve em Portugal nas últimas décadas: Soares lançou-se às presidenciais de 1986 com apenas 8% de intenções de voto, contra Freitas do Amaral, apoiado pelo CDS e PSD, que congregava toda a direita, o seu velho ex-amigo Salgado Zenha, apoiado por PCP e PRD, e Maria de Lurdes Pintassilgo, apoiada por parte da esquerda. Acabou por suplantar os dois últimos, obrigou Freitas a ir à segunda volta, obrigou Cunhal a engolir um "sapo" e a votar nele, e venceria com ligeiro avanço, transformando uma derrota certa numa vitória quase impossível. Vieram depois os dez anos presidenciais, a coabitação nem sempre fácil com Cavaco (a quem de certo modo deu a sua primeira maioria absoluta), o estilo régio combinando com à vontade nos meios populares, e uma imensa popularidade que levou a que o próprio PSD o apoiasse na reeleição onde ganhou com incríveis 70%. Acabada a presidência, Soares tornou-se um senador sempre interventivo, voltando ao combate político como cabeça de lista pelo PS ao Parlamento Europeu nas europeias de 1999, que venceria, e já mais tarde, depois de aos oitenta anos pronunciar um sonoro "basta de política", resolveu lançar-se numa inglória corrida de novo à presidência da república, aos 81 anos e contra o apoio da família e amigos, contra Cavaco Silva e o anteriormente amigo Manuel Alegre, culminando num modesto terceiro lugar. Seguiram-se anos de intervenção política, os últimos já penosos, em que verificou uma guinada à esquerda e severas contradições com o que tinha defendido em tempos. Mas a importância política de Soares tinha ficado lá atrás.
Este homem teve inúmeras qualidades, como a coragem, o optimismo, a determinação inquebrantável, o à vontade e a absoluta recusa em agradar a gregos e troianos, o apego à liberdade e a lealdade aos amigos. E também muitos defeitos, como a arrogância política e imenso sentido de superioridade (para não ir mais atrás recordo os debates com Cavaco em 2006), inabilidade executiva, desconhecimento de dossiers, desprezo pela coisa pública, com se viu com os montantes gastos na pós-presidência e na sua fundação, e...excessiva lealdade aos amigos, alguns deles de duvidosa credibilidade (Craxi, Sócrates, Andrez Perez, mesmo Mitterand). Este homem não deixou ninguém indiferente, e é talvez o político mais amado e odiado dos últimos cinquenta anos. Se por um lado teve inúmeros amigos, por outro arranjou outros tantos inimigos - Marcelo Caetano, Cunhal, Eanes (com quem faria as pazes), Cavaco, e, a mais dolorosa, Salgado Zenha, outrora um amigo inseparável e com quem nunca conseguiu reconciliar-se. O que significa que deixou uma forte marca e que era realmente um político total, em todo o sentido da palavra. Pôde-se ver agora, por um lado nas imensas cerimónias de estado, nas declarações de líderes estrangeiros e na imprensa internacional, na emoção das pessoas à passagem dos restos mortais; mas também nas redes sociais, com o seu habitual lavar de roupa suja, declarações de ódio e acusações de toda a sorte, algumas completamente absurdas - culpas totais na descolonização (coisa aliás desmentida por pessoas como D. Duarte de Bragança, que afirmou que Soares merecia ir para o Panteão Nacional, ou Ribeiro e Castro, no caso particular de Moçambique), morte de Sá Carneiro, e até uma verdadeira e feliz - o fim da revolução - e outras que provavelmente só com o tempo poderão ser validadas ou descredibilizadas.
Este homem com imensos defeitos é provavelmente o principal responsável por Portugal ser um país livre e pertencente por direito próprio à União Europeia. Mesmo por todas as questões em que discordei dele, e nos últimos anos foram quase todas, não deixarei de lhe agradecer. Se discordo dele publicamente, a ele sobretudo se deve.
Soares entrou justamente na História de Portugal com um relevantíssimo papel. Está para a 3ª República como Afonso Costa para a 1ª e Salazar para o Estado Novo. Com uma diferença essencial, para além de outras também importantes: ganhou esse papel com o voto dos portugueses e não impondo-se a eles. Eis o que diferencia o "Bochechas" dos outros. E isso é realmente fixe.
Que descanse em paz.
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