quinta-feira, abril 09, 2020

Da glória à tragédia no espaço de dias


Decididamente há tristes ironias. Aquilo que se passou num curto espaço em Bérgamo é uma delas.

Como se sabe, a província de Bérgamo e a cidade que lhe dá o nome estiveram no epicentro da pandemia do Covid-19 na Lombardia, que por sua vez era a região com mais casos e mortes de Itália, que era o país mais atingido da Europa, que substituiu a Ásia como epicentro da pandemia no Mundo. Ou seja, a província de Bérgamo durante algumas semanas foi o coração da epidemia que corre o globo, a zona onde os doentes não paravam de chegar aos hospitais, já de si em ruptura, o local para onde todos olhavam com temor e espanto. Causaram especial comoção as imagens de camiões militares a transportar caixões, a meio da noite, quando as morgues estavam já ocupadas. A situação dramática de Bérgamo e da Lombardia está a aliviar aos poucos, embora longe de estar controlada. Mas os difíceis dias de Março vão deixar marcas na cidade e na região, uma das mais ricas de Itália e da Europa.

E no entanto, nas semanas anteriores à chegada da doença à Europa, Bérgamo era notícia por razões bem mais felizes. O clube de futebol da cidade, a Atalanta Bergamasca Calcio, já tinha tido uma prestação soberba na época passada, de tal forma que se classificou para a Liga dos Campeões em terceiro lugar no campeonato, à frente do mais poderoso vizinho Inter de Milão, e teve o melhor ataque da prova. Este ano ainda assombrava mais o Calcio e a Europa, proporcionando um futebol de ataque como raramente se vê no tão defensivo campeonato italiano, obrigando os seus adeptos a levantar-se vezes sem conta, tantos eram os golos marcados. Na série A esmagava - e não apenas vencia - boa parte dos seus adversários. Vejam-se estes números: 7-1 à Udinese, 7-2 ao Lecce (fora), sete a zero ao histórico Torino, em pleno Comunale de Turim, e cinco humilhantes secos ao muito mais prestigiado vizinho, o outrora poderosíssimo A.C. Milan. Para além disso, estava a fazer boa figura na Liga dos Campeões. Depois de um arranque em falso, em que perdeu os três primeiros jogos por números esclarecedores, virou completamente e conseguiu, por uma nesga, classificar-se para os oitavos de final da Liga dos Campeões, atrás do Manchester City. Nunca nenhum clube o conseguira perdendo os três primeiros jogos do grupo. E já nos desafios a eliminar, os de Bérgamo deram 4-1 ao Valência no S. Siro, casa emprestada pela exiguidade do seu estádio, e 4-3 na segunda mão, na cidade espanhola, em jogo à porta fechada, já com o Covid a fazer estragos. Festejou-se entusiasticamente o resultado da primeira mão, com milhares de adeptos a vitoriar a equipa, e os jogadores também comemoraram a passagem aos quartos de final. Que por causa disso poderão nem vir a acontecer.

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É que esse momento mágico da Atalanta estará directamente ligado às semanas de chumbo que se abateram sobre a Lombardia. O vírus já tinha entrado dissimuladamente no Norte de Itália, e o jogo em que a Atalanta recebeu o Valência, com mais de quarenta mil adeptos no S. Siro, a festejar ruidosamente cá fora depois, muito contribuiu para a sua disseminação - se é que não terá sido o detonador e causa principal do que se seguiu. Tanto que dias depois vários jogadores do Valência ficariam contaminados no jogo à porta fechada, embora curiosamente só um dos da Atalanta tenha sido atingido.

Assim, um feito que trouxe a pequena cidade lombarda para as bocas do mundo pelas melhores razões acabou por ser completamente ultrapassado por uma situação dramática no espaço de dias, situação para a qual concorreu. Do céu ao inferno num curtíssimo espaço de tempo. Uma queda imprevisível mas especialmente amarga. Precisamente por isso, e adivinhando a dificuldade de se concluírem os campeonatos interrompidos, já há petições em Itália para que a Atalanta seja declarada campeã da série A, mesmo que não estivesse em primeiro no campeonato (mas tinha o melhor ataque, com setenta golos marcados), e até há quem lhe queira dar o troféu mais desejado, a Liga dos Campeões. Se dar o título de campeão europeu parece exagerado e até de gosto duvidoso, a atribuição do campeonato italiano à equipa que mais espectáculo deu parece justíssima, à imagem do que aconteceu ao malogrado Gran Torino em 1949, cujo futuro radioso acabou entre destroços na colina da Superga. Seria um magro consolo para tudo o que Bérgamo sofreu, mas para além de compensação, seria um reconhecimento justo aos que respeitaram o público não se rendendo ao futebol cínico e resultadista e um pequeno incentivo, ainda que amargo, para o futuro.

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