domingo, setembro 30, 2012

Notas sobre a Bulgária - das montanhas de Rila ao Mar Negro


Aqueles a quem modernamente chamamos "búlgaros" são no fundo um conjunto de etnias amalgamadas ao longo dos tempos. Aos trácios, o povo original da região (dos quais os mais famosos terão sido Spartacus e o mitológico Orfeu), juntaram-se mais tarde tribos eslavas, seguidos dos búlgaros originais, da região do Volga e de origem túrquica. Pelo meio receberam a "visita" de macedónios, gauleses e romanos. Esse cocktail étnico deu origem ao primeiro e segundo império búlgaro, que se formaram após a conversão ao cristianismo, e que duraram toda a Idade Média, até à anexação otomana, que abriu caminho à queda de Constantinopla. O jugo dos turcos manteve-se por mais de quatrocentos anos, até que em 1878 os búlgaros obtiveram definitivamente a sua independência.

Não admira que o país sofresse tantas marchas de tantos invasores. A Norte fica o vale do Danúbio, dividido do resto do país pelos montes Balcãs, que se prolongam também para a Sérvia; a Sul são os Ródopes que o dividem da Grécia; e no miolo destes sistemas montanhosos situa-se a extensa planície trácia, algo semelhante ao Alentejo, com intermináveis campos de girassóis e matagais, vendo-se aqui e além algumas cidades. Se as montanhas exigem algumas dificuldades em transpô-las, a planície, que se estende até ao Mar Negro, facilitava qualquer invasão.

A Bulgária é um país desprovido de grandes palácios ou castelos, talvez devido ao longo domínio turco. A sua grande riqueza patrimonial são as igrejas e sobretudo os mosteiros. O mais conhecido (e visitado) é o de Rila, incrustado num apertado vale entre montanhas imponentes. Fundado pelo eremita São Ivan Rilsky, que se refugiou naquelas inóspitas serranias em oração e por muito austero espírito monástico, é um vasto conjunto, formado pelo mosteiro propriamente dito, com vários pisos, onde continuam a viver monges, pela torre central, e pela igreja, a meio do complexo de edifícios. Boa parte do mosteiro foi reconstruído nos séculos XVI e XIX. A igreja é, à boa maneira ortodoxa, uma explosão de frescos, ícones e talha dourada, uma combinação admirável, com as enormes montanhas cobertas de floresta como fundo.

Há ainda outros mosteiros, como o de Bachkovo, e uma profusão notável de túmulos trácios por toda a parte. Mas há ainda outros vestígios. Plovdiv é a segunda cidade búlgara, e situa-se na planura trácia, junto ao rio Miritsa. Distingue-se da paisagem envolvente pelas suas estranhas colinas, e tem marcas visíveis dos povos que por lá passaram ao longo dos milénios. Chamou-se Filipópolis quando Filipe II da Macedónia a tomou, mudando o nome para Trimontium no tempo dos romanos. Os eslavos chamaram-lhe Paldin, os turcos Filibe, em latim continuou a ser Philippopolis, até que a língua búlgara a transformou em Plovdiv, que manteve até hoje. Dos romanos sobejam vestígios, como o antigo estádio, de que só uma parte das bancadas é visível à superfície, já que o resto se estende por baixo das ruas centrais da cidade, e sobretudo o teatro, bem conservado, provavelmente o ex-líbris da cidade, semelhante ao que existe em Mérida. Entre os dois vestígios romanos, também no centro, situa-se o maior legado dos turcos, uma enorme mesquita.


O teatro romano, virado para a zona plana, está encostado numa colina, para onde partem ruelas empedradas, algumas delas medievais, com casas de estilo revivalista búlgaro (mais do século XIX, como aquela em que ficou hospedado o poeta francês Lamartine), igrejas, torres, até à "fortaleza trácia", de onde se colhe estranha antena de televisão e outra um memorial ao exército soviético. Talvez devido ainda ao seu passado multicultural e à sua localização no cruzamento de diversas vias, são visíveis pela cidade as minorias turcas (forçadas pelo regime comunista a mudar os seus apelidos) e ciganas. Nota-se a dada altura um certo ambiente mais asiático do que balcânico. Existe também uma sinagoga, mas é pouco crível que haja muitos judeus, apesar do auxílio prestado pelos búlgaros durante a Segunda Guerra. De gregos e arménios que lá viveram tampouco há sinais.



De Plovdiv segue-se pela interminável planície que só acaba no Mar Negro, que surge quase sem se anunciar. Entre as principais cidades costeiras, Burgas e Varna, situam-se as grandes estâncias balneares, como as tradicionais Nessebar e Pomorie, a pitoresca Sozopol, uma estreita península com inúmeras casas de madeira, e a movimentada Sunny Beach. Esta espécie de cruzamento entre uma Ibiza de Leste e Lloret del Mar, em que até o nome é anglicizado, é destino de famílias inteiras e adolescentes desenfreados, contando-se ingleses, alemães, russos, turcos, e outras nacionalidades bizarras, como bielorrussos. Há também bastantes israelitas, atraídos pela relativa proximidade do Mar Negro e pelos casinos. De tal forma que há pouco tempo houve mesmo um atentado ali ao lado, em Burgas, contra um autocarro israelita que provocou vários mortos e feridos. Em Sunny Beach, entre filas de hotéis majestático-pirosos, bares, restaurantes, discotecas, interminável comércio de produtos de marca falsificada, e a comprida praia que se estende até ao promontório mais próximo, quase não se vê uma tabuleta em cirílico. Há também consumidores búlgaros, mas a maior parte está lá para trabalhar para as hordas que os visitam, que entram e saem dos restaurantes da comida rápida, assistem aos jogos de futebol da Premier League a da Bundesliga, e invadem os discos onde ecoa desde o house mais rasca até aos grandes hits da actualidade, incluindo o omnipresente Ai se eu te Pego e Dança Kuduro. A globalização do turismo faz que dentro dos resorts não se veja nada de absolutamente inesperado. a não ser, talvez, pequenas provas de como a religiosidade dos búlgaros tem marcas em toda a parte: mesmo nos bares mais barulhentos e com ambiente mais hedonista, não falta, junto às garrafas de vodka ou à caixa registadora, um ícone de um Cristo Pantocrator ou de um santo, em especial o padroeiro S. Jorge ou os venerados S. Cirilo e S. Metódio.

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