Não têm faltado mortes de figuras públicas, mas esta era tudo menos inesperada. Adolfo Suárez, o homem que, a par do Rei, conduziu a transición espanhola entre os numerosos escolhos que a poderiam fazer afundar para o caminho da democracia, fazendo a ponte entre as duas Espanhas e estabelecendo os consensos possíveis, desapareceu neste Domingo. Já há muito que se tinha retirado da vida pública, sofrendo de alzheimer profundo.
Natural de Ávila, na Castela profunda, Chefe de governo no período conhecido com transición, escolhido pessoalmente pelo Rei Juan Carlos, Suárez tinha sido secretário geral do Movimiento Nacional, o partido único do regime franquista, que amalgamava falangistas, carlistas e conservadores autoritários, e era bastante mais novo do que os antecessores. Conseguiu com que as Cortes votassem nas suas leis reformistas que permitiram a constituição de partidos políticos, eleições livres e o fim da maior parte das normas restritivas (daí os franquistas considerarem que se tratava de uma ruptura e não de uma reforma), incluindo o regresso de velhos inimigos de Franco. Reconciliou velhos inimigos e permitiu a elaboração de uma nova constituição, que consagrava o regime monárquico parlamentar. Ele próprio obteve legitimidade nas urnas ao ganhar as primeiras eleições, em 1977, à frente da sua UCD, um muito heterogéneo partido centrista, algo aparentado ao "nosso" PSD. Voltou a ganhar em 1979, mas entretanto diversos desaires, tanto com a oposição (o governo era minoritário) com com o partido e com os militares levaram-no apresentar a demissão. No dia da tomada de posse do novo governo, presidido por Leopoldo Calvo Sotello, deu-se a invasão das Cortes pelo bando do picaresco Tejero Molina, no célebre 23-F, e até ao desfecho da situação, por intermédio e determinação do Rei, Suárez não virou a cara aos golpistas, justificando com a sua posição que ainda era a de Presidente do Governo espanhol.
Retirou-se da acção governativa e da UCD, que rapidamente se desintegrou, e fundou o CDS, esperando recolher o eleitorado centrista. Mas depois de bons prenúncios nos anos oitenta, apenas umas franjas se lhe mantiveram fiéis, particularmente na sua Castela. O grosso do antigo eleitorado da UCD transitou para o PSOE e principalmente para a Aliança Popular de Fraga, tornada Partido Popular e por consequência o grande partido do centro direita. Sentindo-se abandonado pelos seus, farto da política partidária e com graves problemas de saúde na sua família, Suárez deixou então a política activa. Só voltaria para um discurso na campanha do filho, Adolfo Suárez Illana, nas eleições para o governo de Castela-La Mancha pelo PP. Antes tinha ganho o prémio Príncipe das Astúrias pela Concórdia e passado pela tragédia da morte da mulher e de uma filha. Depois disso, o silêncio.
Suárez Illana, que entretanto também deixou a política activa para se dedicar à advocacia e à tauromaquia, revelou mais tarde que o pai sofria de alzheimer profundo. É dele a fotografia, aliás premiada, em que Juan Carlos se passeia com o amigo que já não o reconhecia, na ocasião em que lhe quis entregar a altíssima condecoração Ordem do Tosão de Ouro, e encontrou um homem já completamente fora do mundo. Seria a última fotografia pública de um dos homens que mais lutou pela liberdade em Espanha, em todos os sentido da palavra. Depois disso, as homenagens de quem lhe sucedeu à frente dos destinos de Espanha. Entretanto, mais confrontos em Madrid provocados por franjas radicais. Seria bom que tanto políticos como manifestantes tomassem como exemplo Adolfo Suárez e a sua capacidade de compromisso, de coragem e de desprendimento. Depois da democracia, seria o maior legado de um homem que merecia mais em vida.
PS: algumas revelações sobre as deslealdades políticas feitas a Suárez podem ser vistas nesta entrevista, já com algum tempo, concedida por Suárez Illana.
PS2: em tempos escrevi que restavam poucos líderes políticos de primeira linha dos tempos da Transição. De há dois anos para cá, desapareceram quase todos. Fraga Iribarne e Santiago Carrillo, em 2012, há pouco tempo Blas Piñar, chefe histórico da direita franquista dura, e agora o protagonista, Adolfo Suárez. Restam o Rei e Felipe González.
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