sábado, outubro 25, 2014

A última réstia de dignidade dos que até na morte são abandonados


Entre a espuma das dias e a informação que se sucede, deve ter passado mais ou menos despercebida uma das mais tristes páginas que li nos últimos tempos. Segundo nos diz esta notícia do Público, a Irmandade da Misericórdia e de São Roque acompanhou o funeral de 86 pessoas, nos primeiros nove meses de 2014. Acompanhou-os porque ninguém mais quis saber deles, ninguém inquiriu sobre a morte dessas pessoas, ninguém reclamou o corpo. Seis delas eram crianças, abandonadas pelos pais ou encontradas já mortas. Quatro permaneceram com identidade desconhecida. As informações são do Instituto de Medicina Legal, que cede os corpos à Irmandade para que possam realizar um funeral condigno, a custas da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa.

A notícia entristece e espanta pelos números de abandono a que são votadas tantas pessoas. Seriam idosos sem família, ou a quem a família não ligava, pessoas doentes na mesma situação, alguns emigrantes ou refugiados, provavelmente, sem conhecimentos em Portugal. E crianças abandonadas ao nascer, ou doentes, cujos responsáveis preferiram abandonar. Em qualquer dos casos, uma enorme desumanidade, ou se preferirmos, uma ausência de humanidade que deixou aquelas pessoas morrer sozinhas, no quase completo abandono.

Buscar culpados no "sistema", no "regime", na "época em que vivemos" ou em qualquer outro contexto qual bode expiatório abstracto, pode ser a primeira reacção. Provavelmente é um pouco de tudo. O egoísmo vigente é enorme, mas pode-se dizer que antigamente era melhor? Talvez se olhássemos um pouco à volta, para casos muito próximos, até descobríssemos situações destas. Por vezes, dá-se mais atenção a um gato do que a uma pessoa. A pobreza material, a suburbanização, a diminuição das famílias com a queda da natalidade, tudo isso são razões plausíveis. Mas antes de mais os responsáveis são pessoas, que por acção ou omissão permitiram que dezenas de humanos tivessem um fim que mais ninguém testemunhou.


"Mais ninguém" não é bem assim. O único aspecto positivo da notícia é saber que há pessoas, as da dita Irmandade, que acompanham desconhecidos à sua última morada, dando-lhes assim uma identidade e uma dignidade que não tiveram quando morreram. Recuperam, nem que seja por breves horas, o estatuto de seres humanos e com personalidade jurídica que os seus corpos, teoricamente, já tiveram. Eis um acto verdadeiramente cristão: devolver na morte a dignidade áqueles que em vida foram negados por todos os outros, rezando pela sua salvação e dando-lhes uns momentos de atenção que outros não lhes deram quando mais precisavam. tentarei saber se no Porto a Santa Casa se presta a tão caridosa e louvável missão.

2 comentários:

Anônimo disse...

Diria que todas as misericóridas têm essa obrigação:

Entre as obras de misericórdia estão:

Dar de comer a quem tem fome;
Dar de beber a quem tem sede;
Vestir os nus;
Dar pousada aos peregrinos;
Assistir aos enfermos;
Visitar os presos;
Enterrar os mortos.

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João Pedro disse...

Tem toda a razão. Mas duvido que todas cumpram a função de acompanhar os mortos desconhecidos ou abandonados à sua última morada, se bem isto pareça ser um problema mais próprio dos grandes centros urbanos.