A "confissão" de Carlos Abreu Amorim na já célebre entrevista ao Público na semana passada deixava adivinhar uma discussão acalorada, como o próprio título deixava prever. É verdade que CAA (como assinava) esteve na linha da frente do liberalismo político e económico na blogoesfera e em boa parte da opinião publicada, fosse no Blasfémias ou nos seus escritos aos quais dava o título de "é difícil ser liberal em Portugal", em que se mostrou sempre convicto, assertivo e até truculento. CAA esteve no CDS, saiu com Manuel Monteiro para a Nova Democracia, voltou a sair quando percebeu que não era um projecto liberal como pensava (com direito a manifesto de justificação), mas anos depois, e negando esse mesmo manifesto em que afirmava que "não tinha jeito para homem de partido", aderiu ao convite do PSD de Passos Coelho (supostamente liberal), elegeu-se como deputado por Viana e chegou mesmo a ser o candidato à câmara de Gaia. Daí que esta mudança espante muito, mesmo que houvesse alguns indícios nesse sentido, como cheguei a apontar, sobretudo o apoio eufórico ao ultra-despesista Luís Filipe Menezes, ou seja, tudo a que CAA se opusera antes.
A justificação que CAA dá é sobretudo o da crise financeira despoletada em 2008 e o tombo do BES, que necessitam de um "estado forte". Não tenho nada a objectar, mas fico sem perceber se o entrevistado, que sempre me deu ideia de ser um indivíduo culto longe dos populistas de café, pensava antes que não tinha de haver qualquer regulador para que o mercado funcionasse, ou se achava que a existência de um regulador não era o malfadado "socialismo", e então havia alguém no posto da vigia a regular as fronteiras aceitáveis do mercado. Se se trata da primeira hipótese, é perfeitamente aceitável, já que CAA dava ideia de ser um entusiasta da mão invisível e da cataláxia, essa auto-regulação da sociedade, e portanto trata-se mesmo de uma mudança de ideias. Caso contrário, pode perfeitamente conservar-se liberal tentando mudar as circunstâncias (i.e., pedir o reforço da regulação) e não as ideias. Será meramente uma fuga para a frente ao aperceber-se da impopularidade do liberalismo. Tendo em conta que o choque ocorreu recentemente, ao fazer parte da comissão de inquérito do BES, e sabendo o apoio dado antes a Menezes, podia inclinar-me para esta hipótese, e aí aconselhá-lo-ia o artigo de Gonçalo Almeida Ribeiro, no Observador, mas prefiro ser benevolente e acreditar que uma houve uma genuína e dolorosa mudança de uma ideologia em que cria ardentemente. Até porque diz a meio duas frases determinantes: a lógica do liberalismo económico tem uma contradição insanável com a natureza humana. O agente económico deve ter regras fortes e devem existir instituições que forcem a sua aplicação. Caso contrário, a ganância, a prevaricação, o instinto de fuga às regras. Nem mais. Isto é algo em que os devotos do liberalismo quasi sem regras deviam reflectir (e os marxistas também, por razões parecidas).
De qualquer maneira, não é o primeiro liberal fervoroso a abandonar o "barco": também Pedro Arroja, que por sinal também passou pelos Blasfémias, o deixou. E conheço pessoalmente outros casos. Um fenómeno parecido com o de ex-comunistas, quando a ideologia lhes desaba em cima (aconteceu na europa em 1968, e em Portugal em 1989-1991), de crentes religiosos, quando perdem a Fé, ou de não-crentes, quando a encontram. Um processo sempre doloroso, que creio ser de imenso vazio e alguma orfandade, e que nos casos mais graves levam a que se quebrem relações sociais e de amizade de anos e que se abandonem lugares, trabalhos e hábitos. Por isso espero que CAA recupere rapidamente o seu lugar ideológico, e que sobretudo saiba honrar o lugar para que o elegeram.
PS: e que por favor, não volte e encomendar coisas destas, que são mais dignas de programas de humor.
2 comentários:
Mas não: talvez tenha sido breve, mas referi-me aos ex-esquerdistas neste ponto: "...Um fenómeno parecido com o de ex-comunistas, quando a ideologia lhes desaba em cima (aconteceu na europa em 1968, e em Portugal em 1989-1991)"
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