quarta-feira, fevereiro 18, 2015

Duas visões europeias opostas



O braço de ferro no interior da eurozona está para durar, como não podia deixar de ser entre partes que além de se quererem salvar, querem também salvar a face. Mas é curioso notar como tudo isto resulta sobretudo das intransigências de dois países, a Grécia, o país assistido e quase insolvente governado há semanas por uma coligação contra natura de esquerda radical com nacionalistas de direita, e a Alemanha, o "motor" da economia europeia, o líder oficioso da zona euro e principal credor dos gregos, governado pela coligação luterana CDU (e o apêndice católico CSU)- SPD, encabeçada pela temida e detestada Angela Merkel. Mais do que um choque político e económico, é um choque cultural.


Os dois países têm características muito diferentes, que em dose moderada são louváveis, mas que em excesso conduzem ao impasse como o que se verifica agora. A Grécia é um país intrinsecamente mediterrânico, uma terra de oliveiras e vinhas, de sol e de mar em abundância, com um povo histriónico e caloroso, que se orgulha (algo ilusoriamente) dos antepassados que ali criaram uma civilização que influenciaria todo o ocidente, ainda que verdadeiramente o que os norteia seja a cultura ortodoxa fundada no Império Bizantino e o caos balcânico. Esse caos é verdadeiramente admirável até determinado ponto, principalmente para quem, como eu, é apreciador de filmes de Kusturika, de ali tão perto. Aliás, o cinema mostrou ao mundo essa Grécia caótica, fogosa, apreciador das "coisas boas da vida" e algo tresloucada em filmes como Nunca ao Domingo e Zorba. O pior é a outra face do problema: uma administração pública tão caótica como as manifestações de anarquistas, vulgares na terra (as "manifs" são quase um desporto nacional), a fuga maciça aos impostos dê por onde der, uma corrupção generalizada e aceite tacitamente como uma instituição subterrânea. Não esquecer o significado do termo "balcânico", e que a Grécia fica no fim da península com esse nome.


Claro que tais características desagradam e confundem os alemães. A honestidade negocial hanseática, a disciplina prussiana, a eficiência no trabalho, a qualidade dos produtos, o cumprimento estrito da lei e das regras - um povo eminentemente jurídico, com provas dadas no direito - são qualidades de que os germânicos não prescindem. Só que essas características, levadas ao extremo, degeneram-se, e transformam-se também elas em adjectivos perniciosos: intransigência, autoritarismo, falta de flexibilidade, espírito punitivo. Não faltam teses que consideram que os alemães seguiram Hitler durante tanto tempo por causa do seu espírito de obediência à lei e à sua disciplina irredutível. E vários testemunhos (o de Eichmann, por exemplo), atestam-no, justificando alguns actos do Holocausto com ordens superiores e o sentido do "dever", sem qualquer juízo crítico.

São estes dois espíritos que agora se confrontam no meio de uma União Europeia expectante. Os gregos cederam em boa parte do que o Syriza prometia inicialmente e concordaram em largar várias exigências, a começar por perdões de dívida, mas é duvidoso se conseguirão inculcar alguma ordem na administração e no sistema fiscal. Os alemães continuam até agora inamovíveis, considerando que não há desvios às obrigações e que não há qualquer plano alternativo de alteração de prazos e juros a que os anteriores governos gregos se obrigaram. E no entanto, a sua opinião pública nem é assim tão inflexível.

Claro que não sabemos se realmente as coisas são exactamente desta forma. As negociações subterrâneas são feitas de cedências que não transpiram para a opinião pública. Mas bom seria que houvesse alguma compatibilidade, ou no mínimo, boa vontade e entendimento, entre estas duas visões, tão diferentes entre si, mas ambas tão europeias. O futuro próximo da UE exige-o. Se assim não for, teremos o caos da Grécia estendido a muitos mais países.


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