Diminuíram um pouco esta semana, como tudo o que é meditático e tem de dar lugar a nova onda noticiosa. Mas continua a divisão a propósito dos refugiados de guerra, sobretudo sírios, e terá forçosamente de continuar. Não é apenas uma moda passageira: é a realidade a bater-nos à porta. Por isso mesmo, fico perplexo com a quantidade de campanhas anti-refugiados, misturando assuntos que nada têm a ver uns com os outros e comparações absurdas e informação descontextualizada ou simplesmente falsa. Basta andar pelas redes sociais para ver vídeos de manifestações de radicais islâmicos em cidades europeias ou de supostos refugiados a espalhar o caos, perguntas tão inteligentes como "porque é que eles não vão para a Arábia Saudita, que tem afinidades com eles?", ou "a Noruega é que é um exemplo, não constrói mesquitas enquanto a Arábia não deixar construir igrejas". O primarismo destas campanhas, bem ao estilo de grupos xenófobos, como o nosso PNR doméstico, é facilmente desmontável com uma breve leitura dos acontecimentos, como esta, ou uma pesquisa sobre a Síria. Infelizmente, parece que muita gente ainda julga que os refugiados sírios, sendo na sua maioria muçulmanos (mas não na totalidade), são todos um bando de fanáticos que pretende pôr bombas pela Europa fora, ou que os infiltrados do chamado "Estado Islâmico" são aos milhares.
Convinha saber que esta gente foge em grande parte devido precisamente ao "Estado Islâmico", sobretudo se são cristãos, xiitas, yazidis ou curdos de várias denominações. Noutros casos, foge da repressão da regime de Assad, dos jiadistas da frente Al-Nusra ou muito simplesmente de fogos cruzados e da destruição que assola a Síria há quatro anos. Essa parte será importante para quando surge a sacrossanta pergunta "então e os nossos? Tanta gente com privações ou sem casa e vamos ajudar os outros"? É muito louvável que se queira ajudar "os nossos", mas o problema não é certamente o mesmo: "os nossos" não têm grupos inimigos a disparar em todas as direcções, não vivem entre escombros de guerra e fogos cruzados, bombas ou fanáticos que matam todos à sua frente. Entre pobreza e guerra vai uma grande diferença.
Depois, os sírios não são todos muçulmanos. Parte significativa é cristã (são mesmo das comunidades mais antigas, com alguns falantes de aramaico bíblico) e entre os muçulmanos há inúmeras divisões. A brecha entre xiitas (alauítas, que dominam o poder e as forças armadas) e sunitas nota-se aqui particularmente, e o Irão e as monarquias do Golfo apoiam os respectivos aliados. Mas sejam muçulmanos, cristãos, drusos ou outros, o direito a serem assistidos é o mesmo.
Ah, e as comparações com a Arábia Saudita. Como se a Síria, com o regime castrador e violento que apesar de tudo tem, se lhe comparasse. Além de estar longe de ser unirreligioso, como o pais da dinastia Saud, e de serem proibidas manifestações públicas de outras religiões que não a sunita, não teve a sharia como lei de estado, nem consta que seja um hábito dos sírios, e o regime baathista sempre impôs uma laicidade sob uma cultura mais muçulmana. Não faltam igrejas, na Síria, e só mesmo por puro desconhecimento é que se considerará que a cultura entre os dois países é assim tão idêntica.
Por isso, quando virem campanhas sobre o perigo da islamização via sírios, é melhor desconfiar e ver as fontes. Nalguns casos, as mesmas até podem ter sido usadas, como o autor do vídeo em que se viam refugiados a recusar ajuda da cruz vermelha por causa exactamente da cruz. Até que se descobriu que o motivo nada tinha a ver com isso, mas com o facto de estarem há horas sob chuva intensa.
E para os que invocam "valores cristãos" para se opôr a todos os que fogem à guerra, recordo a leitura da epístola de Santiago, lido na homilia do último Domingo: "Que proveito há, meus irmãos se alguém disser que tem fé e não tiver obras? Porventura essa fé pode salvá-lo? Se um irmão ou uma irmã estiverem nus e tiverem falta de mantimento quotidiano, e algum de vós lhes disser: Ide em paz, aquentai-vos e fartai-vos; e não lhes derdes as coisas necessárias para o corpo, que proveito há nisso? Assim também a fé, se não tiver obras, é morta em si mesma"
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