quarta-feira, dezembro 18, 2013

As personagens reais que inspiraram Hugo Pratt


Mais de dois anos depois do fim oficial da guerra civil na Líbia, que começou com o levantamento da população de Bengazi, em Fevereiro de 2011, da morte do até aí todo-poderoso Muammar Kadhafi e da desintegração do regime "verde", o país permanece num caos, dividido entre milícias várias e grupos de jihadistas que não hesitam em atacar embaixadas e raptar membros do frágil governo vigente. É difícil adivinhar o futuro para esta imensa extensão de areia com uma costa habitável, dividida em três regiões naturais sobre enormes jazidas de petróleo.
 
Mas em tempos da 2ª grande Guerra, quando aquele território estava sob o domínio da Itália de Mussolini, houve alguém que se atreveu a "profetizar" o futuro daquela região. Escrevo entre aspas porque a "profecia", na realidade, datava do pós-guerra, e o "áugure" era o desenhador Hugo Pratt, criador do célebre Corto Maltese.
 
Numa outra série que assinou, Os Escorpiões do Deserto, Pratt narra as peripécias de um oficial polaco pouco ortodoxo, Koinsky, e a sua luta para minar as forças do Eixo no norte de África. A sua equipa, os tais Escorpiões que davam nome à série, era um grupo heterogéneo que juntava agentes sionistas judias, espiões gregos e beduínos da Cirenaica. 
É exactamente nesta região da actual Líbia que se dá um dos primeiros episódios, Nada a assinalar em Djaraboub. A cidade do título é um afrancesamento da al-Jaghbūb árabe, ou da Giarabub italiana (que inspirou mesmo um filme glorificando a presença dos transalpinos naquelas paragens), que se situa num oásis em pleno deserto líbio, e que era, e o álbum de Pratt refere isso mesmo, a cidade santa dos senússios, uma ordem muçulmana com ligações ao sufismo e que daria origem à dinastia dos Al Senussi, que reinou na Líbia até ao golpe de estado de Kadhafi, em 1969.
 
A propósito, no álbum, o líder espiritual dos senússios, Omar el Muchtar, que se revelará bem diferente do que parecia, tem o nome "emprestado" de Omar al Mukhtar, principal resistente líbio ao domínio italiano, que acabaria executado por estes, e cuja fotografia Kadhafi exibiu, colada ao uniforme, numa visita a Itália, para o recordar aos antigos algozes. Mas se repararmos bem, a personagem do livro lembra antes o verdadeiro líder da Ordem de Senussi à época, que se tornaria no Rei Idris, o primeiro soberano da Líbia unida, e também o último, porque seria destronado por um golpe de estado em 1969. Ou seja, Pratt resolveu fundir o resistente mártir e o líder espiritual e temporal, sem a menor sombra de dúvida, para criar uma personagem com fundamento que se visse.
                                                       Na foto de baixo, o Rei Idris da Líbia.
Mas o mais interessante é a personagem de Hassan el-Muchtar, de quem Pratt nos diz, na apresentação da personagem, o seguinte: "Hassan - sobrinho de Omar el-Muchtar, chefe espiritual da Senússia. Este beduíno representa para o seu povo a continuação da revolução dos senússios (Líbia)....Não se atreve a ser revolucionário, provavelmente por causa da sua formação. Mas Pratt garante-nos que o encontraremos mais arde, desemenhando um papel político mais vincado, no quadro da ideologia do seu país."
 
Hassan é um rebelde ambicioso mas precipitado, mais interessado no poder do que nos ensinamentos do Corão. Mas a menção de Pratt, a tal "profecia" do papel político mais vincado é curiosa. Em que grau se dará essa relevância política?
 
Olhando bem para a imagem, parece-me que adivinho: sim, isso mesmo, Hassan el-Muchtar não é outro senão...Muammar Kadhafi. O seu papel político será indubitavelmente vincado, mas a ideologia do país mudaria radicalmente para um regime de culto pessoal, misto de pan-arabismo, socialismo e islamismo. E a certeza confirma-se ao saber que os Escorpiões do Deserto tiveram a sua primeira edição em 1969, precisamente o ano da subida ao poder do então jovem coronel. Hugo Pratt daria portanto ao novel ditador honras de personagem numa das suas obras.

Não sei se seria uma demonstração de simpatia por Kadhafi e o novo regime, e de antipatia pelo velho rei Idris, cuja "inspiração" não fica bem na fotografia, ou neste caso, nos quadradinhos do álbum. O autor italiano era um rebelde, à boa maneira das suas personagens, e um iconoclasta, muito embora fosse simpatizante de ordens maçónicas. Certo é que que tanto Al Mukhtar, como Idris e Kadhafi passaram à história, e a eles sucedeu uma posição caótica cujo fim ninguém pode prever. Se fosse vivo, será que o desenhador italiano alteraria alguma coisa nos Escorpiões do Deserto? E a quem  - ou a que grupo, entre liberais, monárquicos, islamitas e "verdes" saudosistas de Kadhafi - atribuiria um futuro "papel político mais vincado"?
 

2 comentários:

A.Teixeira disse...

Muito bom.

É para ler coisas como esta que vale a pena manter uma rotina diária de ler alguns blogues.

João Pedro disse...

Por acaso calculei que lhe interessasse, tendo em conta o seu interesse por banda desenhada e os muitos posts que tem deixado com alusões pertinentes à BD.