terça-feira, março 04, 2014

A 2ª guerra da Crimeia?



À crise na Ucrânia sucedeu a crise na Crimeia, que alguns já consideram como sendo estado de guerra. Com a alteração do estado de coisas em Kiev, boa parte da população da península, afecta aos russos, iniciou um contra-movimento, erguendo a bandeira russa onde podia, fazendo valer a sua maior ligação a Moscovo do que a Kiev. Na confusão que se seguiu, conseguimos ver manifestações e combates de rua entre tártaros da Crimeia, herdeiros do Kanato que ali reinou até ao século XVIII e que Estaline tentou exterminar, contra cossacos locais, que nos leva a perguntar se fomos transportados para a época de Catarina, a Grande ou o romance Miguel Strogoff.


As últimas notícias são confusas, mas muito pouco animadoras: grupos paramilitares a ocupar edifícios administrativos em Simferopol, com o governador local a declarar fidelidade ao "povo da Crimeia". A Duma de Moscovo a autorizar por unanimidade o emprego de tropas na região para "proteger os russos que aí habitam". Forças russas (não só da Marinha, da base naval de Sebastopol) a tomar posição, sendo já 22 mil - a Rússia pode ter efectivos até 25 mil homens na península, segundo os tratados que firmaram a concessão da base naval da frota do Mar Negro. Cerco dessas tropas a bases ucranianas, e mesmo um ultimato para se renderem (fontes russas já desmentiram). O comando naval ucraniano também a declarar a sua fidelidade ao "povo da Crimeia " (isto é, à Rússia). Manifestações pró-russas em várias cidades do Leste da Ucrânia, como Donetsk e Karkhov. Manifestações contra o envio das tropas em Moscovo, tendo resultado em trezentas prisões. Ou seja, a Rússia invocou o direito à protecção das suas populações para, de facto, ocupar militarmente a Crimeia. Não é muito diferente do que aconteceu em 2008, quando não hesitou em enviar os seus tanques e aviação para reprimir a Geórgia, sob o pretexto de proteger a Abkházia e a Ossétia do Sul. E se a Ucrânia se lembra de proteger os tártaros, esse povo das estepes asiáticas, tradicionalmente inimigo da Rússia, que já ali vivia há séculos e que em grande parte deportaram para a Sibéria depois da 2ª Guerra? 


Entretanto, os países da NATO ameaçam com sanções, a expulsão da Rússia do G-8, etc. Pouco poderão fazer mais, até porque além da França e Inglaterra, únicas nações europeias com real poder militar, e que decerto não quererão intervir, quem rechaçaria a Rússia? A Polónia? Roménia? Repúblicas bálticas? Claramente insuficiente. Obama e os ministérios dos negócios estrangeiros europeus devem estar a passar dias de angústia, só de pensar na hipótese de guerra. e não é para menos. 

Não é impunemente que se recorda a Guerra da Crimeia, em meados do século XIX, da invasão alemã da Checoslováquia para "proteger os Sudetas", do genocídio soviético ou da crise dos mísseis de Cuba. A Rússia assinou um tratado com a Ucrânia, em que se comprometia a respeitar a integridade territorial deste país em troca do arsenal nuclear que lá restava. Agora, prepara-se para rasgar esse acordo, para impedir a deriva dos ucranianos para o ocidente, depois de derrubarem o cleptómano Yanukovitch (que, coincidência, se refugiou em Rostov). Confiam no seu poderio militar e nos muito apoiantes que têm no leste e sul da Ucrânia, sobretudo na Crimeia. Mas também podem pôr o pé em falso. Aliás, ainda hoje a bolsa de Moscovo registou uma descida vertiginosa. O urso russo tem garras afiadas, mas algum barro nos pés.

Talvez o mais óbvio fosse a Crimeia  fazer parte da Rússia (assim como a Bielorússia, ou Kalininegrado/Konigsberg na Alemanha) mas a "dádiva" de Krushev nos anos cinquenta, quando a URSS parecia eterna, a confusão da desagregação em 1991 e a incompetência dos russos em conseguir mantê-la determinaram no mapa que pertenceria à Ucrânia. Esperemos que nos próximos dias não rebente um real conflito armado nessa zona balnear, habitual estância de Verão do Mar Negro, que teria consequências funestas. E ninguém sairia a ganhar, mesmo que vencesse militarmente.

Para acompanharmos a situação, podemos ler o blogue Da Rússia, de José Milhazes, e as reportagens de Paulo Moura na Crimeia, entrevistando russos e tártaros.


PS: uma dúvida importante era qual seria o papel da Turquia, membro da NATO e ocupante da margem Sul do Mar Negro, em todo este caso. Rui Tavares esclarece-nos, num artigo desta semana: os turcos estão solidários com os tártaros da Crimeia. muita atenção a esta potência que provavelmente, e na senda do "neo-otomanismo" de anos recentes, quererá dar uma palavrinha em todo este caso.

Um comentário:

MettelO aGuiar Mota disse...

Desculpe, mas toda a gente sabe que o Miguel se chamava Strogonoff.
Acho que devia corrigir.