segunda-feira, julho 25, 2016

Frases ocas, perigos imprevisíveis e a ferida de Nice

Fico sempre de pé atrás quando, mal surge a notícia de mais um atentado terrorista, aparecem logo as vozes a dizer que "é preciso tomar medidas drásticas", que "o Ocidente está de novo sob ataque" ou que "a Europa não percebeu que está em guerra" conjugado com um "o Daesh continua a crescer no Iraque a na Síria". Ouvi estas quatro frases depois dos atentados de Nice, e retive-as porque são uma súmula das declarações-tipo de rede social feita à pressa, com uma qualquer pretensão a que os outros as ouçam comko expressões de altíssima sabedoria.
 

Não sei de que medidas drásticas se fala; geralmente, os autores da frase nunca dão exemplos, mas calculo que seja a expulsão de toda a população com origem étnica de uma maioria muçulmana, ou a proibição da prática do Islão, nas opiniões mais radicais, ou a expulsão de clérigos. Mas em casos em que não se percebe bem a motivação, de que serviria (além de que a expulsão de populações inteiras nunca traz grande resultados)?
 
O ocidente está de novo sob ataque". Sim, é verdade. O terrorismo não poupa a Europa e um pouco os Estados Unidos e a Austrália. Mas que dirão os iraquianos, sírios, afegãos, turcos, indianos, bengalis, inúmeros países africanos, etc, que apanham com o grosso dos ataques e que são as primeiras vítimas do propalado Daesh? O eurocentrismo de muitos continua a não perceber que a Europa já não é o centro do Mundo.
 
 
"A Europa não percebeu que está em guerra". Percebeu sim. Aliás, aquando dos atentados de Novembro em Paris, François Hollande usou imediatamente essa frase desde então, e com ele, muitos outros. Sim, a Europa e não só está numa guerra atípica e fora das habituais normas do direito internacional contra uma organização terrorista e maléfica que tem base territorial e serve de inspiração a uma quantidade não desprezível de assassinos escondidos. Mas que é que isso implica? Que as pessoas se fechem em casa, andem mais ou menos armadas, cavem bunkers? Ou tentem fazer a sua vida da forma mais natural possível? E se os autores dessa frase dessem o exemplo e se dessem como voluntários para combater o Daesh no Médio Oriente? Por outro lado, dizer que o Daesh continua em grande na Síria e no Iraque prova que não têm estudado os mapas de guerra nos últimos tempos. Fallujah, Palmira, Sinjar, tudo nomes que não lhes dizem nada.
 
Frases ocas à parte, a verdade é que nos últimos tempos nos temos confrontado com uma data de actos trágicos que só variam no grau (que pode ir até às centenas de mortes de uma penada, como há dias em Bagdad), quase todos com a marca do Daesh. Pior: das células terroristas conectadas com a organização-mãe passou-se os lobos solitários muitíssimo difíceis de detectar, que se declaram soldados do Daesh", ou que se não o fazem, imediatamente vem a organização declará-lo como tal (caso de Nice). E agora temos todos os alienados e sociopatas que, inspirados pelos atentados do dia anterior, tentam fazer algo de semelhante, como tem acontecido na Alemanha nos últimos dias. E mesmo não sendo adeptos do Daesh, como o atirador de Munique, a psicose instalada leva a que se fale logo em terrorismo islâmico. Pergunto-me até que ponto as notícias em barda e os directos intermináveis não potenciam ainda mais ataques, de forma similar à que as imagens de incêndios provocam aos pirómanos.
 
Os tempos que se avizinham vão ser muito complicados. Não sei se se instalará a paranoia ou a banalização. Qualquer uma delas é perigosa.
 
Uma coisa é certa: não voltaremos a ver a bela Promenade des Anglais, observada do châteaux de Nice, bordejada pela Baie des Anges, pelo Negresco e pelos casinos e palácios de verão, com a mesma disposição. Nice, emblema maior da Côte d´Azur e do savoir-vivre daquela região, é a ferida mais pungente em todo este Verão perigoso. E vai demorar a passar.

Nice 2005, numa foto de fraca qualidade mas muito pessoal

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