Não exagero se disser que a vitória da Selecção no Stade de France, a 10 de Julho de 2016, e a conquista da Taça da Europa representam, se não o fim, pelo menos um enorme rombo no triste fado lusitano, no desgraçadinho, no "nunca conseguimos", na saudade do futuro que nunca chega. E há mais quem corrobore, como Eduardo Lourenço ou André Lamas Leite. Tal vitória, perante a nossa bête noire futebolística no seu próprio covil, com o Mundo inteiro a assistir, daquela forma heróica, em que o capitão e máxima referência é excluído maldosamente do jogo sob a complacência do juíz, e é o jogador mais subvalorizado de todos que aplica o pontapé de glória, é digna de uma epopeia de Camões ou de um épico à Cecil B. DeMille.
O futebol, como mobilizador de multidões, tanto nos recintos como nos ecrãs, é hoje talvez o maior expoente da globalização. Veja-se a título de exemplo os milhões que são pagos pela sua radiofusão, os custos da publicidade, a venda de camisolas por toda a parte, etc. Mesmo em países tradicionalmente pouco ligados à bola, o interesse é crescente - o investimento em jogadores nos Estados Unidos e na China, além do enorme aumento do número de espectadores e telespectadores dos jogos, é brutal. Por isso, e por muitas outras razões, não se pode reduzi-lo a um mero "jogo entre 22 pessoas para enfiar uma bola numa rede". Talvez não siga a máxima de Bill Shankly, mas a verdade é que nunca o futebol esteve tão mediatizado e globalizado como agora. Que eu me recorde, o único português que pôs espanhóis e ingleses em silêncio, antes de ser aplaudido, chamava-se Eusébio da Silva Ferreira.
Dada a importância do futebol na visibilidade de uma comunidade, os triunfos transcendem a simples vitória desportiva. E Portugal mostrou-se muito ao mundo nos últimos vinte anos, depois do surgimento na década de sessenta, de alguns brilharetes nos 80 e da "geração de ouro". Em todo o mundo se vê gente com a camisola da Selecção, particularmente desde que Cristiano Ronaldo se tornou um supercraque e um ídolo à escala mundial. Lembremo-nos por exemplo daquele miúdo indonésio encontrado à deriva depois do tsunami de 2004, o Martunis, mais notícia pela camisola que envergava do que pelo salvamento em si. Daí a importância extraordinária desta conquista: uma equipa diminuída, privada do líder natural, desfeiteou outra dada como vencedora e arrebatou o troféu mais cobiçado que estava entalado na garganta desde 2004.
Há também o aspecto simbólico da coisa, remetendo para o futebol puro e simples, a começar pela primeira vitória oficial de sempre sobre a França, uma desforra particularmente saborosa por ser no seu "circo máximo", numa final, e com representantes das anteriores derrotas em cima do palco - Humberto Coelho pela selecção de 1984, João Vieira Pinto pela de 2000, e os próprios Ronaldo e Ricardo Carvalho (também únicos sobreviventes da equipa de 2004) pela de 2006. Sempre nas meias finais. Mas na final, o vencedor seria outro. E logo no país onde reside a maior comunidade portuguesa fora de Portugal, e que se mostrou avidamente. No dia a seguir ao triunfo, teriam um motivo a mais para andar de cabeça levantada. Repegando numa piada que já deixara no outro dia, este ano, o verdadeiro dia de Portugal e das comunidades foi não a 10 de Junho mas a 10 de Julho.
Como também se disse, no dia seguinte ao sonho tornado realidade, e apesar da festa imensa e da recepção triunfal à Selecção, a dívida pública não baixou, os serviços públicos não melhoraram, o desemprego não desapareceu, a classe política não se regenerou e até se soube que a Comissão Europeia prosseguido com processo de sanções a Portugal por falta de medidas contra o défice. Mas o que fica mesmo é o exemplo de organização, trabalho, fé, união e espírito de sacrifício que os jogadores e técnicos demonstraram, com um pouco de sorte pelo meio - mas a sorte aparece nestas ocasiões. Aquilo que nunca tinham conseguido, e que se dizia, particularmente após o Euro-2004, que nunca iriam conseguir, concretizou-se numa extraordinária vitória quando todas as circunstâncias indicavam o contrário. O impossível era afinal possível, e o triste fado não gemeria para sempre. Socorrendo-me da mitologia lusitana, pode-se dizer que o mito (da suplantação) do Adamastor sobrepôs-se ao do sebastianismo falsamente esperançoso e para sempre à espera de nada.
Para acabar, uma palavra sobre Fernando Santos. Em 2004, quando Portugal perdeu em casa, dizia-se que só com Mourinho a equipa nacional conseguiria alguma coisa; Fernando Santos fora despedido do Sporting, tivera um fim de época para esquecer e era dado como um loser, embora competente. A passagem pela Grécia deu-lhe como que uma nova raça. Apanhou a Selecção em cacos, depois de uma derrota caseira com a Albânia (sim, a aventura de Portugal neste Europeu começou da pior forma possível), e levou-a tranquilamente à qualificação. Geriu tudo com objectividade, humildade (apesar da declaração, no fim verdadeira, de que só voltaria no dia 11) e Fé, que aliás demonstrou publicamente e sem quaisquer pruridos nas declarações após a vitória. Deixou quase todos os louros para os jogadores. Provou que não é preciso ser muito mediático nem exuberante para se atingir o topo quando este mais parece inalcançável. Curiosamente, este parece ser o anos dos treinadores dados como losers: Rui Vitória, Claudio Ranieri, Fernando Santos, todos eles triunfaram quando nada o fazia prever. Mostraram trabalho, fé e resistência à descrença que os rodeava. Ganharam. E deram um valiosíssimo exemplo a todos.
Já lhes disse que o triste fado de Portugal acabou no dia 10 de Julho de 2016?
O mais comovente vídeo da final; golo de Éder, música "Acção" de Carlos Paredes, montagem de Cristiano Saturnino.
O mais comovente vídeo da final; golo de Éder, música "Acção" de Carlos Paredes, montagem de Cristiano Saturnino.
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