Apesar de todos os boatos, custa-me a crer que o putsch na Turquia tenha partido do próprio Erdogan. Se assim fosse, não haveria tantos soldados mortos (só na improvável hipótese de serem todos mártires), além de que golpes protagonizados pelas forças armadas naquele país são relativamente vulgares. A diferença é que desde há muito que as purgas nas cúpulas das forças armadas tinham permitido "limpá-las" dos que se consideravam "guardiões do estado laico", pelo que os postos superiores eram de homens fieis a Erdogan. Assim, foram entidades intermédias ou menos graduadas as responsáveis pelo golpe abortado.
Não vale a pena estar a reportar e a debater todos os acontecimentos da tentativa de golpe. Como já disse, com os poucos elementos disponíveis, não acredito na teoria de auto-golpe como pretexto de reforço de poderes. Mas é razoável pensar que Erdogan estivesse a par de planos para uma tentativa e o utilizasse para aumentar posteriormente o controlo do país, como efectivamente acontece. O apelo à população surtiu efeito: perante milhares de civis que apoiavam o presidente, e tendo em conta a sua legitimidade democrática, todos os partidos da oposição e grande parte das potências internacionais apressaram-se a condenar o golpe, o que reforçou a sua posição. Para mais, os revoltosos cometeram erros incomensuráveis, disparando sobre populares, o parlamento e o palácio presidencial, desencadeando ondas de violência e a sua própria derrota. E as memórias de outros golpes (particularmente o de 1960, que acabou com o derrube e morte de um primeiro-ministro eleito) não ajudaram.
Com a purga de militares, funcionários públicos, académicos e magistrados em curso (fala-se de mais de 50 mil pessoas afastadas), reforçado pela tentativa violenta de o afastar, Erdogan está a conseguir o que queria: moldar uma Turquia sob o seu jugo. Apesar da constante exaltação da memória do Império Otomano, não parece que estejamos perante perante uma islamização do país ou o fim absoluto do kemalismo. Recorde-se, aliás, que o presidente falou para as câmaras de TV ainda no aeroporto de Istambul, com uma enorme imagem de Kemal Ataturk atrás de si, para lhe conferir toda a legitimidade como líder turco. O mais provável é que seja um projecto de autoritarismo pessoal, aproveitando a dupla herança dos otomanos e do regime criado por Ataturk (que governou sempre com punho de ferro) para reforçar a Turquia como potência regional comandada por ele, um pouco à imagem do que se passa na Rússia de Putin, com aquele híbrido de URSS czarista abençoada pelo metropolita ortodoxo de Moscovo. E a aproximação a esta última, bem como a Israel, enterrando questões recentes, parece apontar nesse sentido (e provocar calafrios à NATO).
Mais inquietante ainda é a vontade de mudar algumas situações que se pensava estarem definitivamente para trás, como a intenção de reintroduzir a pena de morte, e pior, aplica-la retroactivamente. Erdogan clama que se for essa a vontade do povo, então deve ser respeitada. Mas caso aconteça, para além de afastar definitivamente a Turquia da UE, apenas revela que poderá considera-se uma democracia, no sentido bruto do termo, mas nunca um regime liberal. Além de apontar uma vontade popular como fonte única de direito (desde que convirja com os seus propósitos), a aplicação de leis penais de forma retroactiva (particularmente a pena capital), coisa absolutamente interdita em democracias liberais, tornaria a Turquia numa tirania com forma democrática, baseada na vontade popular, que entregaria o poder o chefe supremo, de poderes ilimitados, acima de qualquer norma ou princípio, com os outros órgãos de soberania a cumprir um papel meramente decorativo. Mais do que os perigo imediatos que por ali grassam (tensões militares, terrorismo, etc), essa é que devia ser a principal causa de temor.
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