Os fins de semana foram transformados em jornadas contínuas de protestos contra a política de apertar o cinto do governo. Manifestações convocadas por vastos sectores da sociedade, como as de 15 de Setembro, pela CGTP e variados sindicatos, pela polícia, pelos enfermeiros, etc. Neste último tivemos a manifestação de protesto dos "artistas" e da "gente da cultura", ou mais precisamente, pessoas ligadas ao teatro e à música, sob o lema, emprestado de outras caminhadas, "Que se lixe a Troika".
É natural que num período tão incerto e duro se queira proporcionar a quem passa, num Sábado solarengo, uma ampla oferta musical ao ar livre e de borla, ainda que a lisboeta Praça de Espanha se preste pouco a que se pare lá (a nossa D. João I sempre é mais aconchegada). Menos natural, ou mais disparatado, se quiserem, é virem os ditos "agentes culturais" querer que "a Troika se lixe". Ainda não percebi se estas pessoas organizaram aquilo por lirismo de classe ou se vivem no planeta Marte. Sim, mandam-se os componentes da "Troika" embora, dizendo-lhes que "queremos as nossas vidas". Resta saber como vivê-las quando o Estado se vir sem dinheiro para pagar seja a quem for passados poucos meses e com os bancos a fechar-lhe a porta na cara. Da música de intervenção? Da cantiga que "é uma arma"? Do ar ou do vento que passa?
O mais espantoso é que ao mesmo tempo que querem que a "Troika" se vá e que gritam "FMI fora daqui" (logo a instituição mais aberta a um alívio das condições dos acordos), como se isso não tivesse as nefastas consequências atrás resumidas, protestam acima de tudo contra os cortes do Estado na cultura. Se já há dificuldade em cumprir tudo o resto, em pagar a nossa imensa dívida, em honrar os compromissos, em continuar sequer obras paradas, como o túnel do Marão, e se para mais protestam contra a subida dos impostos, como querem que o Estado subsidie a cultura, ou não faça cortes? Que esquizofrenia é essa de quererem expulsar quem nos financia e ao mesmo tempo exigirem o retorno aos subsídios? Que alternativas propõem? A ideia que passam, com slogans mais ou menos pueris como "não nos deixam sonhar" ou "querem matar a cultura", é a de que sem subsídios, ou seja, sem lhes pagarem, não há "cultura". Será que os tais sonhos estão a ser esboroados ou é mais uma fonte de rendimentos que seca?
Não que o Estado não possa ou não deva subsidiar as várias expressões de Arte, como aliás aconteceu ao longo dos séculos. Os Estados Pontifícios foram dos maiores fomentadores das obras do Renascimento, e não podem ser acusados de ser propriamente "socialistas", como diriam os nossos liberais mais dogmáticos. Nem tampouco o nosso D. João V, Frederico II ou os Filipes, nas suas encomendas a Velasquez. O risco é de o Estado e demais poderes públicos se tornarem nas únicas ou maioritárias fontes de financiamento dos artistas, que se tornam assim agentes políticos, ao serviço de uma dada ideologia ou interesse estatal, cerceando a sua criatividade e independência. É isso que se passa nos estados totalitários e autoritários, onde grandes artistas se puseram ao serviço do respectivo poder, como Eisenstein, na URSS de Estaline, Leni Riefenstahl na Alemanha Nazi, Pirandello na Itália fascista, Dali na Espanha franquista, e o grande Almada Negreiros, que tantos trabalhos criou para o Estado Novo. A lista é infinda.
Aparentemente, a nossa "gente das artes" não se lembra disso. Ontem, ouvi Camané falar "no medo que havia há um ou dois anos", e que agora parece que está a ser posto de parte pelas pessoas em manifestações como aquela. A ideia, encapotada, de que vivemos num sucedâneo do Estado Novo é tão ridícula que merecia uma imensa pateada ao fadista. E enquanto observava os conjuntos musicais, aliás talentosos, a sucederem-se no palco, com intervalos em que uma criatura grotesca aparecia a fazer momices (haveria subsídios estatais para isso?), pensava na estranha esquizofrenia daquela gente toda, que quer mais apoios do Estado e ao mesmo tempo quer mandar embora quem o subsidia. Sim, em tempos de vacas gordas até se justificam. Mas estamos numa época de vacas magrérrimas, em que outros sectores são prioritários. Os criadores culturais terão de viver dos seus Mecenas e do público, trabalhando com criatividade, talento paciência e suor. A crise quando chega é para todos, e não é por se empunhar uma guitarra ou se criarem umas abstracções elogiadas por críticos amigos que se ganha o direito a ficar imune.
2 comentários:
Parabéns João, gostei imenso desta!!!
Grande abraço
Luis Allegro
Obrigado, Luís, uma abraço para ti também.
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