quarta-feira, abril 27, 2016

Um século sem Mário de Sá Carneiro



Parece que ontem fazia cem anos que Mário de Sá Carneiro morreu, ou antes dizendo, se matou com estricnina num quarto de hotel em Paris, com premeditação e assistência.


Vão longe os tempos em que a sua poesia me cativava (e que me levou mesmo a declamar alguns dos seus poemas em momentos infaustos), embora nunca tenha sido um ávido leitor do género, e que me levou também a explorar a sua prosa, esse romance inclassificável e irreal que é A Confissão de Lúcio
Mas ontem, vendo as efemérides, lembrei-me de novo de Sá Carneiro e da sua obra (e da sua contribuição para a revista Orfeu, onde também colaborou Amadeo de Souza Cardozo, que por coincidência tem vindo a ser muito falado por estes dias pela exposição da sua obra em Paris). Creio que por não ser, como disse, um grande seguidor de poesia, nunca tinha deixado nenhuma aqui no blogue. Em honra de Sá Carneiro, da sua obra genial e dos seus tormentos, fica aqui uma ode à inacção e à vontade de desistência que todos nós desejamos num ou noutro momento da vida.


Caranguejola

Ah, que me metam entre cobertores,
E não me façam mais nada!...
Que a porta do meu quarto fique para sempre fechada,
Que não se abra mesmo para ti se tu lá fores!

Lã vermelha, leito fofo. Tudo bem calafetado...
Nenhum livro, nenhum livro à cabeceira...
Façam apenas com que eu tenha sempre a meu lado
Bolos de ovos e uma garrafa de Madeira.

Não, não estou para mais; não quero mesmo brinquedos.
Pra quê? Até se mos dessem não saberia brincar...
Que querem fazer de mim com estes enleios e medos?
Não fui feito pra festas. Larguem-me! Deixem-me sossegar!...

Noite sempre plo meu quarto. As cortinas corridas,
E eu aninhado a dormir, bem quentinho– que amor!...
Sim: ficar sempre na cama, nunca mexer, criar bolor –
Plo menos era o sossego completo... História! Era a melhor das vidas...

Se me doem os pés e não sei andar direito,
Pra que hei-de teimar em ir para as salas, de Lord?
Vamos, que a minha vida por uma vez se acorde
Com o meu corpo, e se resigne a não ter jeito...

De que me vale sair, se me constipo logo?
E quem posso eu esperar, com a minha delicadeza?...
Deixa-te de ilusões, Mário! Bom édredon, bom fogo –
E não penses no resto. É já bastante, com franqueza...

Desistamos. A nenhuma parte a minha ânsia me levará.
Pra que hei-de então andar aos tombos, numa inútil correria?
Tenham dó de mim. Co'a breca! levem-me prá enfermaria! –
Isto é, pra um quarto particular que o meu Pai pagará..

Justo. Um quarto de hospital, higiénico, todo branco, moderno e tranquilo;
Em Paris, é preferível, por causa da legenda...
De aqui a vinte anos a minha literatura talvez se entenda;
E depois estar maluquinho em Paris fica bem, tem certo estilo...

Quanto a ti, meu amor, podes vir às quintas-feiras,
Se quiseres ser gentil, perguntar como eu estou.
Agora no meu quarto é que tu não entras, mesmo com as melhores maneiras...
Nada a fazer, minha rica. O menino dorme. Tudo o mais acabou.



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