sexta-feira, maio 27, 2016

Passagem pelo Colmeal


Há já muitos anos que tinha curiosidade de conhecer o Colmeal, a par de outros locais remotos e quase mágicos da Beira Alta sugeridos por velhos livros ou fotografias apelativas. Aqui tratava-se de uma aldeia abandonada perdida no meio dos vales, já quase esquecida, cujos únicos vestígios do passado eram as pedras que restavam dos edifícios. A oportunidade surgiu no último Verão, numa viagem entre a Guarda e Trás-os-Montes, e incluiu outras paragens, como Castelo Rodrigo ou Pinhel.
Estas duas antigas sentinelas de pedra que defendiam a raia das incursões leonesas estão ligadas por uma estrada às curvas apelidada, compreensivelmente, de "excomungada". Um pouco antes do alto da serra da Marofa, um desvio por um estradão, mais umas curvas, e chega-se à paisagem desolada do Colmeal.


As razões do completo abandono da aldeia devem-se a um caso estranhíssimo, e provavelmente único, no Portugal pós-absolutismo. Nos anos cinquenta, todo o território onde estava inserida a aldeia pertencia a uma herdeira dos proprietários que a tinham adquirido aos Condes de Belmonte (o título não aparece aqui por acaso, como se verá à frente), que sob pretexto dos seus habitantes não lhe pagarem a renda devida, moveu-lhes uma acção de despejo, ganha em Tribunal (que considerou ser aquilo uma quinta e não uma aldeia pública), e que seria cumprida coercivamente. Numa manhã de Julho de 1957, um grupo de guardas da GNR assaltou a aldeia e expulsou dali os habitantes e os seus haveres. Diz-se inclusivamente que chegou a haver mortes entre os que resistiram. Todos os habitantes tiveram de abandonar as casas e procurar outro sítio para morar.
Depois da tragédia, a farsa: para pagar os serviços do advogado, a proprietária teve de vender o terreno àquele causídico (outra ironia: um opositor ao regime vigente, que depois do 25 de Abril seria governador civil da Guarda) e a alguns sócios. A propriedade passou por várias mãos, incluindo a Portucel, até aos actuais donos, possuidores de um território que era a sede de uma freguesia e paróquia, e que foi considerado pelas instâncias judiciais não como tal, com os foros e direitos ancestrais da população reconhecidos em séculos anteriores, mas como uma propriedade privada, uma quinta pertencente a uma família e cujos habitantes seriam arrendatários.



A aldeia ficou ali perdida, estes anos todos, com a bizarria de dar nome a uma freguesia cuja sede obrigatoriamente estava noutro lugar. Mas quando lá cheguei esperava encontrar uma paisagem totalmente abandonada, salvo outros viajantes curiosos, como eu, e afinal havia traços de ocupação. Uma casa acima da igreja estava ocupada por uma família que vigiava as obras que ali se estavam a realizar, para um hotel, contaram-me. Um antigo solar que ali existia, comprovado pela dimensão de uma ruína bastante maior que as outras, modestas casas de xisto, estava a integrar no seu interior um novo edifício. A antiga construção pertencera à família dos Cabrais, de onde provinha Pedro Álvares Cabral, que ao que se diz ali residiu. O brasão assim o comprovava (não o vi na altura, só mais tarde em imagens), e daí a propriedade ter pertencido aos Condes de Belmonte, descendentes do descobridor do Brasil (e natural dessa vila beirã), até inícios dos séc. XX. Mas isso não impediu que tivesse escapado à ruína, como tudo o resto. O estado da igreja (do séc. XV, talvez) fazia particular impressão, há muito sem telhado, completamente escavacada, sem vestígios da função sacra que em tempos teve. Apesar das obras, paradas nessa dia, podia-se sentir o isolamento do lugar. Nos montes à volta não se viam outras construções humanas e poucos metros acima pairavam aves de rapina.

Lembrei-me desse desvio ao Colmeal por causa dos anúncios ao novo Countryside Hotel nalguma imprensa, em especial na última revista do Expresso. Os actuais proprietários resolveram formar aquele empreendimento turístico, aproveitando a tranquilidade do lugar, os apoios camarários e comunitários, e até a generosidade agrícola, que permite a plantação de vinha e de oliveiras e a criação de abelhas, cujo mel aparentemente terá dado nome à aldeia. Percebe-se a vontade de devolver a vida a uma povoação morta, com todo o potencial que esta tem. Mas pergunto-me se este afã turístico que aparentemente quer exibir a bucólica aldeia do Colmeal não acabará por torná-la antes num mero resort campestre, sem memória nem nada que a distinga. Há também a questão patrimonial; é muito duvidoso que construir uns monos de betão por cima de um solar antiquíssimo seja a melhor opção de reabilitação, esteticamente e ao nível dos materiais usados (mesmo que se possa pensar que se a aldeia nunca tivesse sido abandonada, hoje estaria repleta de casas de cimento de todas as cores e feitios, sem vestígios das habitações de xisto). E há sobretudo a questão da população que se viu escorraçada das suas casas por causa de um reconhecimento anómalo de uma propriedade e de uma interpretação no mínimo estranha do que é a propriedade pública e privada, e que não parece que vá gozar muito do novo estatuto de aldeia histórica do Colmeal. E assim corre-se o risco de transformar uma ruína de más memórias num conjunto de bungalows sem memória nenhuma. Um dia ainda hei de lá voltar para ver se a transformação acabou por ser positiva ou se mais valia não lhe tocar. Uma coisa é certa: com aqueles acessos, dificilmente se quebrará  isolamento. Valha-nos isto.



Adenda: não faltam sites e blogues com referências ao Colmeal e à expulsão da população. Neste artigo recente há mais pormenores sobre a história da infeliz aldeia.

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